Fé e liturgia: uma lição póstuma de Bento XVI

No centro do que temos chamado de “batalha dos missais” — ou seja, o grande debate a respeito das duas formas do rito romano, a antiga e a nova, o Missal de Pio V e o de Paulo VI —, há uma questão de

É o que Bento XVI recorda num dos textos publicados após a sua morte, no livro póstumo Che cos’é il cristianesimo, “O que é o cristianismo” (ainda sem tradução portuguesa). Numa extensa reflexão sobre o sacerdócio católico [i], o então Papa emérito diz o seguinte:

O Vaticano II nos deu um belo texto sobre o sacerdócio católico, mas não enfrentou o questionamento fundamental que a Reforma do século XVI fez ao sacerdócio católico. Trata-se de uma ferida, esta, que em silêncio continua a fazer-se sentir e que,  na minha opinião, deve ser tratada a fundo e abertamente de uma vez por todas — tarefa um tanto importante quanto difícil, porque nela está implicada todo o problema da exegese, cuja hermenêutica é determinada pela de Lutero […].

Para Lutero, o grave erro da tradição católica consiste no fato de que essa, no curso dos primeiros séculos, novamente transformou o ministério pastoral do Novo Testamento no sacerdotium, tanto que a palavra alemã Priester (germanização da palavra presbyter), contra o seu sentido neotestamentário original, agora significa, de fato, sacerdos. A Igreja Católica teria falsificado radicalmente a mensagem do Novo Testamento abolindo a sola fide e colocando em seu lugar a justificação pela lei. Por isso Lutero considerava a Missa católica tão errada quanto o sacrifício veterotestamentário, exortando a que ela fosse combatida até mesmo com atos de violência.

É absolutamente evidente, portanto, que a “Ceia” [protestante] e a “Missa” [católica] são duas formas de culto completamente diversas, mutuamente exclusivas por sua própria natureza. Os que hoje pregam a intercomunhão deveriam recordar-se disso.

Toda a construção de Lutero se funda na sua concepção da relação recíproca entre os dois Testamentos, baseada sobre o contraste entre Lei e Evangelho, justificação pelas obras e pela fé. O católico percebe espontaneamente que essa concepção não pode ser justa; ele não vê a Santa Missa, portanto, como uma recaída indevida no culto sacrificial da Antiga Aliança, mas como nossa inclusão no corpo de Cristo e, assim, na sua doação ao Pai, ato que faz de todos nós uma só coisa com Ele. O decreto conciliar sobre o sacerdócio, como também a Constituição do Vaticano II sobre a liturgia, são sustentados por essa certeza serena, ainda que, na atuação concreta da reforma litúrgica, a tese de Lutero tenha silenciosamente desempenhado um certo papel, de modo que em alguns ambientes se pudesse sustentar que o decreto do Concílio de Trento sobre o sacrifício da Missa fôra tacitamente ab-rogado. Em parte, a dureza da oposição contra a admissibilidade da liturgia antiga se baseava certamente sobre o fato de que, nesta, via-se operar uma concepção não mais aceitável de sacrifício e expiação [ii].

Lutero contra a Missa

Desçamos aos detalhes do que diz o Pontífice. 

Nas palavras de Martinho Lutero, “todos os bordéis […], todo homicídio culposo, roubo, assassinato, adultério, não são tão prejudiciais quanto essa abominação da missa papista” [iii]. Palavras severas, sim, mas que ilustram bem a radicalidade da oposição protestante àquilo que temos de mais sagrado.

Mas o que a explica? A resposta está justamente nos conceitos de sacrifício e sacerdócio.

A Igreja acredita desde os primórdios que, com a Eucaristia, Jesus não mandou que os Apóstolos simplesmente celebrassem um banquete, lembrassem sua Paixão ou fizessem um ritual de agradecimento a Deus, não. Ele queria que seus discípulos renovassem sua oblação na Sexta-feira Santa, quando Ele se imolou no altar da Cruz e ofereceu-se todo inteiro ao Pai pelos pecados do mundo inteiro. Assim, quando os padres católicos sobem ao altar, eles são sacerdotes e estão oferecendo um verdadeiro sacrifício: o mesmo que Cristo ofereceu dois mil anos atrás, só que agora sem o crime de deicídio e sem derramamento de sangue [iv].

Essa doutrina foi completamente impugnada por Lutero. Simplesmente porque a noção de um sacrifício do qual você participa todos os dias, de um cálice que você toma todos os dias e, portanto, vai fazendo você se santificar dia após dia, não condizia com a “quitação cartorial” na qual ele tinha transformado a fé. A justificação, afinal de contas, é uma dívida que Deus perdoou com uma canetada; por dentro, nada muda em você e suas obras não importam [v]. 

Em tempos de diálogo ecumênico (muitas vezes a qualquer custo), o Papa Bento vem recordar a inconciliabilidade entre a posição cristã desde os primeiros séculos e a posição protestante revolucionária. Para nós, Jesus mandou que se celebrasse um sacrifício, enquanto os evangélicos são apenas convivas reunidos em torno de uma mesa.

Um mal-entendido na Igreja

Mas o Papa também chama a atenção dos católicos para um mal-entendido terrível: dentro da própria Igreja Católica se começou a pensar, sobretudo na época da reforma litúrgica pós-Vaticano II, que “o decreto do Concílio de Trento sobre o sacrifício da Missa fôra tacitamente ab-rogado” — como se fosse possível a Igreja mudar aquilo em que sempre acreditou, e que ela mesma recebeu de Nosso Senhor

Seja como for, por mais que de fato o dogma permaneça o mesmo, a mudança no rito da Missa deixou essa impressão, e a própria rejeição à liturgia antiga “se baseava […] sobre o fato de que, nesta, via-se operar uma concepção não mais aceitável de sacrifício e expiação”. 

anto é verdade o que diz Bento XVI que, como se sabe, o Cânon Romano só permaneceu no Novus Ordo Missæ por um desejo expresso de Paulo VI. A comissão responsável por reformar a liturgia romana queria-o fora da Missa — como Lutero, para quem o Cânon (atual Oração Eucarística I) era uma abominação completa.

Por isso o Papa Ratzinger tinha muito claro: uma coisa foi a reforma pedida pelos Padres no Concílio Vaticano II; outra, a que efetivamente se deu nos anos seguintes. Essa convicção — que ele exprimiu em vários de seus trabalhos teológicos — foi atestada mais recentemente pelo próprio Mons. Georg Gänswein, secretário pessoal do Pontífice, em livro publicado após a sua morte:

Como é evidente a partir dos seus escritos […], o teólogo Ratzinger, no início, era a favor de uma reforma litúrgica, e esse tema foi sempre um dos seus preferidos, já que ele o via como fundamental para a fé católica […]. Porém, ver os desenvolvimentos sucessivos daquela reforma [litúrgica] fez com que ele [Ratzinger] se desse conta de como era diferente o que queria o Vaticano II e quanto foi feito, ao contrário, pela Comissão para a implementação da Sacrosanctum Concilium, com a liturgia transformada em um campo de batalha [vi].

“A liturgia transformada em un campo di battaglia” é exatamente o quadro que se nos apresenta hoje. Fiéis à Igreja, todavia, e esclarecidos pelos ensinamentos de Joseph Ratzinger, também nós podemos entrar nesse “campo de batalha”, cientes de que não estão em jogo banalidades externas, mas a própria fé da Igreja. Afinal, lex orandi, lex credendi: “a lei da oração é a mesma da fé”. O conteúdo da fé, aquilo em que acreditamos, determina o nosso modo de rezar e prestar culto a Deus.


Fonte: Equipe Christo Nihil Præponere

Notas

  1. O texto Il sacerdozio cattolico é de 2018 e foi publicado em Dal profondo del nostro cuore, um livro do Cardeal Sarah em coautoria com Ratzinger. A versão definitiva, porém, sucessivamente revista e ampliada, só veio a lume após a morte de Bento.
  2. Benedetto XVI. Che cos’è il Cristianesimo. Milano: Mondadori, 2023, p. 143ss.
  3. Cf. WA 15, 774. Esta frase de Lutero, tirada de uma homilia para o primeiro domingo do Advento, é citada na aula “A doutrina protestante sobre a Missa”, 2.ª do curso A Batalha dos Missais. Vale lembrar que, neste módulo, antes mesmo de contar a história do desenvolvimento orgânico do Missale Romanum, Padre Paulo fala sobre a natureza sacrificial da Missa católica (colateralmente, o mesmo ponto em que toca o Papa Bento XVI nessas reflexões póstumas).
  4. Para uma exposição extensa do que pensavam os Santos Padres a esse respeito, vejam-se as aulas “O Calvário e a Missa” e “A doutrina católica sobre a Missa”, do curso A Batalha dos Missais.
  5. Justamente por isso o rebelde pôde dizer a Melâncton: Pecca fortiter et crede fortius, ou seja, “Peca com força e crê com mais força ainda”. Pois, se foi para salvar os pecadores que Jesus veio, o que nos resta é pecar mesmo. A santidade não existe, tampouco é possível.
  6. Georg Gänswein, Nient’altro che la verità: La mia vita al fianco di Benedetto XVI. Milano: Piemme, 2023, p. 289.