A Independência do Brasil e o amor pelo país

Sabe-se que o século XIX trouxe o vento de profundas mudanças no continente europeu. As tropas de Napoleão Bonaparte derrubavam, uma após outra, as monarquias do chamado Antigo Regime, espalhando os ideais revolucionários do Iluminismo e da Revolução Francesa. A Santa Igreja passava por uma fase de perseguição, sofrendo graves atrocidades nas mãos dos revolucionários. 

Em 1807, o exército francês invadiu o Reino de Portugal, tradicional aliado da Inglaterra, que se recusava a participar do Bloqueio Continental, ordenado por Napoleão com o objetivo de sufocar o império britânico. Não seria exagero dizer que é aqui que começa uma sequência de processos que levariam, quinze anos depois, à Independência do Brasil. 

A Família Real portuguesa, intimidada pela invasão francesa, toma a decisão de mudar-se para a sua colônia mais próspera, isto é, o Brasil. Encontram refúgio na cidade do Rio de Janeiro, promovendo aqui uma série de reformas que trariam progresso em todos os sentidos. Há uma verdadeira renovação urbana, com a chegada de novos comércios, edificações, ruas, sistemas de saneamento, tribunais, bancos e organizações públicas. A capital colonial torna-se moradia de boa parte da nobreza de Portugal, a começar pelo Príncipe Regente, Dom João VI. A abertura dos Portos às Nações Amigas, em 1808, facilita a importação de produtos de todos os gêneros, culminando na elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal em 1815. 

Contudo, em 1820, ocorre a chamada Revolução Liberal do Porto, fato que exige o retorno da família real a Portugal, sob pena de perderem o poder. Antes de deixar o Brasil, Dom João VI nomeou o seu filho mais velho, Dom Pedro de Alcântara de Bragança, Príncipe Regente do Brasil, no ano de 1821. As tensões políticas em Portugal levam ao desgaste das relações diplomáticas com o Brasil. Indignado com as exigências das elites portuguesas, Dom Pedro rebela-se e dá o famoso Grito do Ipiranga, às margens do rio com o mesmo nome, na cidade de São Paulo. Tal fato está eternizado no famoso quadro de Pedro Américo. No Sete de Setembro, a antiga colônia declarava-se uma nação independente, tendo Dom Pedro I como Imperador. Após alguns embates militares e discussões diplomáticas, Brasil e Portugal finalmente assinam o Tratado do Rio de Janeiro, em 1825, consolidando o nascimento de uma nação brasileira independente. 

Há um detalhe nesse processo que nos interessa como católicos: segundo relatos de pessoas próximas de Dom Pedro, o imperador do Brasil, antes de proclamar a independência, ajoelhou-se diante de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Guaratinguetá, em busca de inspiração para lidar com esses momentos decisivos de nossa História. Mais uma vez, Maria Santíssima se faz presente em nossa História. 

Para além das análises dos historiadores, os 200 anos do histórico Grito do Ipiranga nos convidam a refletir sobre nossa história e nosso destino como povo. A ruptura política com Portugal não obscurece o fato de que somos um país de forte herança católica. Sim, somos um país multiétnico, miscigenado, pluricultural. Sabemos que a formação do Brasil enquanto país se dá em condições únicas, congregando influências que vão desde os hábitos e topografias indígenas, os costumes e a força de trabalho dos negros, assim como a participação de senhores de engenho, aventureiros, bandeirantes e degredados. Porém, não é possível conceber o Brasil sem a formação jesuítica, sem a presença heroica de nomes como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta no sul, Padre Antonio Vieira no norte, entre tantos outros anônimos que cruzaram o perigoso Atlântico, embrenharam-se por matas e serras e enfrentaram os desafios da colonização para realizar a nobre missão de evangelizar a todos que encontravam. 

Os desafios foram muitos: a distância cultural, o abismo linguístico, a falta de recursos, a formação teológica incompleta, a sanha desenfreada de tantos portugueses pelo ouro e pelas riquezas das Américas. Mas o Brasil não se forma apenas como uma empreitada comercial. É também fruto da graça de Deus, que impeliu milhares de sacerdotes, seminaristas, freiras, monges, homens de boa fé que dedicaram suas vidas à causa de Cristo. É inegável que sem os jesuítas, não haveria um Brasil cristão. Portanto, se nos afastamos politicamente de Portugal no Sete de Setembro de 1822, não podemos nos esquecer desse legado rico em cultura e espiritualidade que até hoje se faz presente de forma visível em tantas obras realizadas pela Santa Igreja católica e pelo povo brasileiro.  

Vale, aqui, recordar que para o Papa Pio XII, Portugal e Espanha teriam sido chamados a levarem o evangelho ao novo mundo. Diz o Pontífice: “Aconteceu então – quando uma série de episódios funestos arrancava grande parte da Europa do seio da Igreja, que com tanta sabedoria e amor materno a havia plasmado – que Portugal, juntamente com a Espanha, sua nação irmã, abriu à mística esposa de Cristo imensas regiões desconhecidas levando-as ao seu seio materno, compensando o que havia sido perdido com inumeráveis filhos da África, da Ásia e da América”. 

Ainda: “Como foi possível que vós, embora sendo poucos, fizestes tanto na santa cristandade? Onde Portugal encontrou forças para acolher sob seu domínio tantos territórios da África e da Ásia, para estendê-lo até às mais distantes terras americanas? Onde, senão naquela ardente fé do povo português, cantada por seu maior poeta, e na sabedoria cristã dos seus governantes, que fizeram de Portugal um dócil e precioso instrumento nas mãos da Providência, para a atuação de obras tão grandiosas e benéficas?” (Sæculo Exeunte Octavo. A Atividade Missionária Portuguesa, 13 de junho de 1940, n. 8-9). 

Além das raízes católicas de nossa formação, a data serve para nos lembrar de um segundo ponto: o sentido de participar da vida de uma nação. Robert Nisbet, em seu livro História da Análise Sociológica (Universa, 1980), afirma que a identidade individual é construída em torno de instituições de significado. Entre as mais importantes, encontramos: a família, a comunidade e a nação. Em cada uma delas, os indivíduos encontram vínculos que fornecem a eles sentido para sua conduta, ou seja, uma razão pela qual viver, cada uma à sua maneira e intensidade. O sentido de pertencimento, de fazer parte de uma totalidade maior, que escapa ao plano individual, é a chave para entendermos a adesão saudável do indivíduo em sociedade. Nas palavras do autor: O termo “comunidade” abrange todas as formas de relacionamento caracterizado por um elevado grau de intimidade pessoal, profundeza emocional, engajamento moral, coesão social e continuidade no tempo. 

Em família, o indivíduo encontra os laços essenciais para sua formação afetiva, emocional e psicológica. Em comunidade, ele encontra o sentido do local, da vizinhança, do afeto pelas proximidades, da cooperação fraterna com o próximo. A nação é uma instituição mais abstrata, pois envolve pessoas muito diferentes, distantes, sem conhecimento direto. Porém, o senso de participar de uma nação nos leva a reconhecer que partilhamos de uma herança histórica e de um destino em comum. Sobre esse assunto, diz o Catecismo da Igreja Católica em seu parágrafo 2239: É dever dos cidadãos colaborar com os poderes civis para o bem da sociedade, num espirito de verdade, de justiça, de solidariedade e de liberdade. O amor e o serviço a pátria derivam do dever de gratidão e da ordem de caridade. A submissão as autoridades legitimas e o serviço do bem comum exigem que os cidadãos cumpram seu papel na vida da comunidade política. 

Faz parte da tradição católica entender o patriotismo, em suas formas moderadas e saudáveis, como uma virtude, pois significa amor à terra em que nascemos, vivemos e morremos. Compartilhamos com nossos irmãos conterrâneos uma língua, uma cultura, uma tradição e uma fé, que no caso brasileiro é sobretudo o cristiansmo, com suas festas, procissões, celebrações e formas de devoção específicas. Acima das divergências políticas, dos interesses econômicos, das discrepâncias culturais e históricas, devemos ver o Sete de Setembro como a celebração do solo comum, da herança comum, que deve nos impelir à prática da caridade e do amor ao próximo. 

Fazemos parte do Brasil, apesar dos pesares, com todos os percalços e com todas as belezas de nossa História. É aqui que vivemos. É no Brasil que nossos pais e avós colocaram suas esperanças de uma vida melhor. É aqui que eles colheram seu alimento, que eles trabalharam, que eles viveram suas alegrias e tristezas. E será aqui que deixaremos as futuras gerações de brasileiros. Eis o espírito de nação: o sentimento bastante concreto de que partilhamos um passado, um presente e um futuro. 

Em síntese: por que o dia da Independência do Brasil é relevante para nós, católicos? Como explicar às crianças a importância de vivenciar essa data de forma reflexiva, e não como apenas mais um feriado sem sentido? 

Devemos contar toda a verdade. Sabemos que a História do Brasil traz consigo problemas gravíssimos, feridas difíceis de cicatrizar, como a pobreza, a escravidão, a violência contra os indígenas, a corrupção, entre tantas outras. Mas não podemos nos esquecer do exemplo de entrega dos missionários jesuítas, a caridade e a fraternidade promovidas pela Igreja, o esforço evangélico do clero e dos leigos. Pois é aqui que vivemos, é aqui que plantaremos nosso futuro. O amor saudável pelo país, longe de promover a divisão, pode servir de combustível para buscarmos dias melhores, em que a palavra de Cristo penetre mais profundamente os corações dos brasileiros. 

Que o Santo Sacramento, que é o próprio Cristo Jesus, seja adorado e seja amado, nessa Terra de Santa Cruz. 

Que Nossa Senhora da Conceição Aparecida, rainha e padroeira do Brasil, continue abençoando nosso país, dando a cada brasileiro a graça de uma renovada esperança em um Brasil mais próximo de Deus. 

Que São Pedro de Alcântara, padroeiro do Brasil, interceda por cada brasileiro hoje e sempre, aprofundando a nossa fé e a nossa vida de oração.


Autor: Cardeal Orani João Tempesta – Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ) 
Fonte: CNBB