A bela oração litúrgica para a Epifania do Senhor

No rito romano tradicional, a festa da Epifania comemora três epifanias ou manifestações: a do Deus humanado aos gentios, representados pelos Magos que lhe trouxeram presentes; a da divindade de Cristo nas Bodas de Caná; e a da filiação de Cristo em seu batismo por São João Batista. Mas o foco litúrgico romano está, predominantemente, na visita dos Três Reis Magos. Por isso a Coleta:

Deus, qui hodiérna die Unigénitum tuum géntibus stella duce revelásti: concéde propítius, ut, qui iam te ex fide cognóvimus, usque ad contemplándam spéciem tuæ celsitúdinis perducámur. Per eúndem Dóminum. — Ó Deus, que no dia de hoje conduzistes os gentios, por meio de uma estrela, ao conhecimento de vosso Unigênito, concedei-nos, vos rogamos, que, já vos conhecendo pela fé, sejamos levados à contemplação do esplendor de vossa majestade. Pelo mesmo Nosso Senhor.

É difícil, para o rito romano, resistir à tentação de alegorizar “altitude”. A Coleta para a festa da Ascensão de Nosso Senhor estabelece um paralelo entre sua subida ao Céu e nossa elevação mental, por meio da qual habitamos em meio às coisas celestes. 

Na Epifania, a estrela de Belém também nos leva a pensar nas coisas do alto, embora o paralelismo aqui seja mais complicado. Na prótase (primeira metade da oração), os Magos seguem o que está fisicamente acima deles (a estrela) em direção ao Menino Jesus, que é ontologicamente o Altíssimo, ainda que fisicamente Ele esteja num nível mais baixo por estar no chão. Na apódose (ou segunda metade), alguém poderia esperar que a estrela fosse equiparada à beleza da alteza de Deus, mas ao invés disso a estrela brilhante é comparada à fé (que vê por um espelho, obscuramente; cf. 1Cor 13, 12), e o Unigênito é equiparado à beleza da alteza de Deus. Isso é em si mesmo um sentimento digno de contemplação, isto é, ao invés de ser uma qualidade ou atributo divino, a beleza da alteza de Deus talvez seja uma Pessoa divina: o próprio Filho.

Há também um belo paralelo entre a estrela que conduz os Magos (duce) e a fé que nos conduz (perducamur) ao que está no alto, mas, novamente, com uma diferença: a estrela conduz, mas a fé conduz integralmente, pois per-ducamur é uma ação mais intensa que ducamur ou dux. A oração prossegue identificando a fé como uma fonte de conhecimento. Muitas vezes fé e conhecimento são contrastados: a fé é o que afirmamos apesar de uma clara compreensão do que está acontecendo, ao passo que o conhecimento é o que a razão pode afirmar com base numa certa compreensão das causas. Aqui, no entanto, a fé dá origem ao conhecimento: é possível que enxerguemos por um espelho, obscuramente, mas ainda assim enxergamos algo.  

Talvez a palavra mais difícil de traduzir na Coleta seja a que o Missal Quotidiano e Vesperal de D. Gaspar Lefebvre originalmente verte como “majestade”. A palavra celsitudo, derivada do latim celsus (elevado às alturas, excelso), é bastante rara no latim clássico. O historiador romano Marco Veleio Patérculo (19 a.C.–31 d.C.) usa a expressão celsitudo corporis com o sentido de “transporte elevado do corpo”. Embora não apareça na Vulgata, o termo se torna mais comum no período patrístico: Padres da Igreja como Paulino de Nola, Orígenes (em tradução), Pedro Crisólogo e Arnóbio de Sica usam o termo, assim como Agostinho — cerca de oitenta vezes. No Código de Teodósio, que é uma compilação de leis do período dos imperadores romanos cristãos, celsitudo se torna um título, o modo de dizer “Vossa Alteza” (cf. Cod. Th. I 6, 6; IX 1, 15). Se o autor da Coleta tinha em mente o segundo sentido, então tua celsitudo se refere à realeza de Deus Pai.

A palavra celsitudo é usada em duas outras ocasiões no Missal de 1962 — na Coleta da IV Leitura do Sábado Santo e na Coleta para a festa de São Francisco de Paula, a 2 de abril —, em ambas para descrever a Deus como celsitudo humilium, que a edição atual do Missal traduz como “exaltação dos humildes”. A edição latina do Novus Ordo preserva a Coleta da Epifania quase integralmente, mas as traduções não: o inglês subestima as dimensões elevadas de celsitudo e acrescenta o tema da glória: already by faith, may [we] be brought to behold the beauty of your sublime glory (uma observação tautológica: behold, “ver”, é uma atividade menos contemplativa que contemplate); o português mantém o verbo “contemplar”, mas o objeto deste é Deus simplesmente, sem “esplendor” nem “majestade”: “Ó Deus, que hoje revelastes o vosso Filho às nações, guiando-as pela estrela, concedei aos vossos servos e servas, que já vos conhecem pela fé, contemplar-vos um dia face a face no céu”

Outra palavra difícil de traduzir é species. Embora ela signifique beleza, a maioria dos católicos hoje a conhece como termo para designar a aparência de pão ou vinho que permanece após a Consagração. Que fique claro: quando a oração foi composta no primeiro milênio, a palavra significava a beleza ou a realidade da coisa, mas depois da reintrodução de Aristóteles no Ocidente, nos séculos XII e XIII, passou a significar a aparência em oposição à realidade da coisa. Se esse sentido mais recente for levado em conta, a oração assumirá providencialmente uma conotação eucarística. Os Magos viram a Sagrada Face de Jesus, e nós contemplamos a beleza da mesma face velada sob as duas espécies sagradas, com a esperança — como diz Santo Tomás em sua oração para antes da Comunhão — de contemplar para sempre aquela face desvelada. O pedido é para que cheguemos à visão beatífica em algum momento do futuro, mas não podemos deixar de pensar na beleza de Nosso Senhor sob a espécie do pão durante o ato de adoração que podemos contemplar agora.    

O foco na beleza de Deus durante o Tempo do Natal também nos faz lembrar a beleza específica da Encarnação. Quando pediram a Santo Anselmo da Cantuária para escrever Cur Deus Homo (“Por que Deus se fez homem?”), ele hesitou e argumentou que o mistério era simplesmente belo demais para ser descrito: “Receio que, assim como sempre fico incomodado com maus pintores quando vejo o próprio Senhor retratado com uma má aparência, recairá sobre mim a mesma culpa, se eu ousar redigir sobre um assunto tão belo com um estilo rude e desprezível de escrita”. Ao se fazer carne, o Verbo tornou visível o invisível (cf. Prefácio do Natal); porém, paradoxalmente, a revelação do Verbo é bela demais para ser colocada em palavras

Em O Idiota, de Dostoiévski, Hipólito clama: “É verdade, príncipe, que o senhor disse uma vez que a Beleza salvaria o mundo? […] Afinal, que espécie de beleza é que salvará o orbe? O senhor é um cristão fervoroso?” O Príncipe Míchkin se recusa a confrontar seu interlocutor bêbado, mas, inspirados pela Coleta da Epifania, podemos arriscar uma resposta. A beleza da sublime e Sagrada Face de Deus salvará o mundo. Na verdade, já o salvou.


Autor: Michael P. Foley e Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere