Quando Jesus entrou em Jerusalém, foi aclamado pelo povo como ‘Filho de Davi’, um título de realeza que o Evangelho de Mateus atribui ao Cristo, àquele que veio anunciar a vinda iminente do Reino de Deus. Nesse contexto, ocorre um diálogo singular entre Jesus e um grupo de pessoas que o questionam. Alguns são herodianos, outros são fariseus: dois grupos com opiniões diferentes em relação ao poder do imperador romano. Perguntam-lhe se considera lícito ou não pagar os impostos ao imperador. Querem forçá-lo a tomar partido pró ou contra César. Tanto num caso como no outro teriam motivo para acusá-lo. Mas, ao responder, Jesus pergunta qual é a figura impressa na moeda em circulação. Como a figura é do imperador, ele replica: ‘Devolvei, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus’. Mas o que se deve a César e o que se deve a Deus? Jesus chama a atenção ao primado de Deus: de fato, assim como na moeda romana está impressa a imagem do imperador, assim também em cada pessoa humana está impressa a imagem de Deus. A própria tradição rabínica afirma que todo homem é criado à imagem de Deus, usando o exemplo da imagem estampada nas moedas: ‘Quando um homem cunha moedas com o próprio molde, elas são todas semelhantes; mas o Rei dos Reis, o Santo Bendito, cunhou cada homem com o mesmo molde feito por ele para o primeiro homem, e ninguém é igual ao seu semelhante’. Só a Deus, portanto, podemos nos entregar inteiramente, só a ele pertencemos e nele encontramos liberdade e dignidade. Nenhum poder humano pode reivindicar a mesma fidelidade (Cf. Comentário oferecido pelo Movimento dos Focolares ao texto do Evangelho do XXVIII Domingo Comum).
Nos meios de comunicação e nas redes sociais, mesmo que a chamada democracia nas relações sociais se considere pluralista e respeitosa, todas as pessoas e grupos que foram contrários ao que se apresenta como “progressista” são tachados de “conservadores”. Parece que alguns são mais iguais do que os outros e só podem ser considerados progressistas e paladinos da liberdade os que cedem ao patrulhamento ideológico reinante, infelizmente, passando pelos membros dos três poderes, chegando ao mundo artístico, além de muitas pessoas que acabam “gritando” pelas redes sociais.
A Igreja Católica e outras Igrejas Cristãs, assim como outros grupos religiosos, todos somos quase asfixiados pelas pressões favoráveis a argumentos como ideologia de gênero, “trans”, aborto, casamento homoafetivo e daí por diante. Tudo indica que se pretende queimar a tradição judaico-cristã, considerada retrógada. É-nos negado o direito de pensar e agir de forma coerente com nossa consciência. Se não nos colocarmos de acordo com a mentalidade reinante, um verdadeiro policiamento ideológico nos massacra!
Por outro lado, graças a Deus as redes sociais servem também para nos manifestarmos contrários à avalanche de contravalores que se espalham em nossos dias. As pessoas que escolhem um caminho diferente daquele que é norteado pelo Senhor Jesus, que é Caminho, Verdade e Vida, já começam a verificar, em seu corpo e sua alma, as consequências. Deus não precisa se dar ao trabalho de armar castigos para a humanidade, pois ela mesma os fabrica. Basta ver a história e perceber como a decadência ética e moral de passadas civilizações esteve sempre aliada às crises políticas e econômicas, geradoras de mudanças profundas de época. Há poucas décadas, quando desmoronou o muro de Berlim, símbolo da fracassada proposta do socialismo real, sabemos que este “caiu de podre”, pela destruição de valores e das práticas consideradas reacionárias. Muitos de nós, iluminados pela sabedoria de São João Paulo II, entrevíamos que muitos outros muros viriam a cair no ocidente da riqueza, do prazer, das propaganda deslavada da impureza, da injustiça, da vergonhosa desigualdade social, da competição desenfreada e desrespeitosa, o mundo do capitalismo liberal. E em nossos dias, tudo indica que o desmoronamento é globalizado.
E não é difícil perceber que inclusive as guerras de nossos dias são espelho das escolhas que nossa época faz. Parece ruir um mundo, brotando o desejo de um mundo novo, possível quando Deus é acolhido, e o que é de Deus, com o timbre que só ele tem, seja a ele devolvido! Cabe-nos olhar para o alto e pedir ao Pai do Céu que recolha os cacos de nossas edificações físicas, morais e sociais destruídas, para fazer uma nova obra de arte, um mosaico como só ele sabe fazer, para que venha à tona uma nova etapa da história, na redescoberta de Jesus Cristo e de seu Evangelho.
Como vemos no Evangelho, Jesus se confrontou com os poderes de seu tempo, simbolizados pela força dos romanos invasores e autoridades religiosas. Muitas foram as armadilhas preparadas por perguntas capciosas (Cf. Mt 22,15-21). Pagar impostos, obedecer às leis civis, construir a cidadania, argumentos válidos desde priscas eras e até hoje atuais, são obrigações simbolizadas numa moeda e na figura de “César”! Os cristãos dos primeiros tempos sabiam que palavras, ainda que pronunciadas maldosamente pelos fariseus, correspondiam à plena verdade, pois eram convictos de que Jesus é verdadeiro e ensina o caminho para Deus. Mais esperto e inteligente é o Senhor, sempre capaz de devolver a pergunta. Antes do César representado na moeda está aquilo que é de Deus, o coração humano. Não é possível organizar a vida, orientar a construção da sociedade e das cidades, ou conduzir a política a um porto seguro, quando os homens e as mulheres não se rendem ao Evangelho e seus valores, assim como às sementes do Verbo de Deus plantadas pelo Espírito Santo em todos os quadrantes da terra ou nas manifestações religiosas e do saber humano.
De forma profética, o Concílio Vaticano II preconizou dramas e desafios que vivemos hoje (Cf. Gaudium et Spes, 36): “Muitos parecem temer que a íntima ligação entre a atividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador… Se, porém, com as palavras “autonomia das realidades temporais” se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais afirmações. Sem o Criador, a criatura não subsiste. De resto, todas as pessoas que crêem, de qualquer religião, sempre souberam ouvir a sua voz e manifestação na linguagem das criaturas. Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece”. Acolhamos o desafio à conversão que tais palavras suscitam!
Por: Dom Alberto Taveira
Fonte: CNBB