A Penitência Quaresmal

Por que falar de mortificação se o Deus cristão é o Deus da vida? Não é a penitência um conceito medieval e ultrapassado? Não existe algo de patológico na valorização da dor? Impor sacrifícios ao corpo não é uma influência indevida do dualismo platônico dentro do cristianismo? Quem pratica a ascese não vai se tornando gradualmente uma pessoa pessimista, alienada, acomodada e sem energia para a transformação da realidade? Todas essas perguntas, resultado da atmosfera laxista da modernidade, são bastante pertinentes. É importante explicar às pessoas as razões pelas quais os cristãos fazem – ou devem fazer – penitência.

Urge, antes de explicar a doutrina católica sobre essa questão, lembrar as duas correntes que se chocavam, no início do século XX, sobre a questão da penitência. A primeira, o naturalismo, propalada pelo modernismo e, hoje, pela teologia da libertação, é influenciada pelo “mito do bom selvagem”, do filósofo Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual o homem, no “estado de natureza”, é bom e é a sociedade o que o corrompe. Percebe-se, pelo discurso das pessoas, que é essa a visão que geralmente prevalece no ambiente educacional. Os educadores tendem a achar que seus alunos serão educados pela simples “conscientização”, pela mera apreensão do que lhes é passado, como na gnose, em que as pessoas são salvas pelo conhecimento, dispensando o auxílio de um salvador.

A outra corrente, o jansenismo, perdeu a sua força. Mas era um excesso bastante atraente na passagem do século XIX para o século XX. A essa visão rigorista, com uma visão negativa do homem, aproximando-se da visão antropológica de Martinho Lutero, opôs-se a majestade espiritual de Santa Teresinha do Menino Jesus, que, com sua vida, assinou uma resposta de Deus à humanidade sobre essa questão.

Ainda hoje, a Igreja repete o chamado de Jesus à penitência. Mas, afinal, por que o faz? Será porque o corpo foi criado por um deus mau, como dizem os maniqueístas? Ou porque a nossa alma está aprisionada na matéria, como creem os platônicos? Definitivamente, não. A razão básica pela qual a Igreja fala de penitência está no amor. E, já que o homem está marcado pelo pecado original, só é possível que ele cresça no amor crucificando, pela vida ascética, o seu “homem velho”, a fim de dar à luz o “homem novo” em Cristo. Está aqui a didática por trás da Quaresma e da Páscoa e a razão pelo qual esses dois tempos litúrgicos estão no centro da vida da Igreja. Essa purificação não se trata de um luxo de uma casta superior, como queriam os jansenistas, nem de um “dolorismo” masoquista, como querem os naturalistas, mas do caminho pelo qual necessariamente vem a santificação dos membros do Corpo Místico de Cristo.

“Garanto-vos: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto. Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo vai conservá-la para a vida eterna”[1].
“Em seguida, dirigiu-se a todos: Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me. Porque, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder-se a si mesmo e se causa a sua própria ruína?”[2].

Não foi, afinal, o próprio Cristo quem pronunciou as palavras acima? Então, como é possível que muitos passem por cima de suas palavras, negando a importância ou mesmo a necessidade de penitenciar-se e portando-se, no fim das contas, “como inimigos da cruz de Cristo”[3]?

Então, confirmada pelo próprio divino fundador da Igreja a necessidade da mortificação, valem as preciosas considerações do padre Reginald Garrigou-Lagrange, retiradas de seu livro Les Trois Ages de la Vie Interieure [“As Três Idades da Vida Interior”][4]. Ele explica, nessa obra, as quatro razões por que é essencial fazer penitência.

A primeira é por causa das consequências do pecado original. Hoje, infelizmente, muitos teólogos aderiram à moda de negar a existência do pecado original, reputando-o como uma invenção de Santo Agostinho. Sabe-se, no entanto, que os fundamentos dessa doutrina estão nas próprias palavras de São Paulo: “No meu íntimo, eu amo a lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão e que me torna escravo da lei do pecado que está nos meus membros”[5]. Ora, de que fala o Apóstolo, ao se referir à “lei do pecado que está nos meus membros”, senão ao pecado original?

Por conta do pecado original, São Tomás de Aquino diz haver no homem quatro vulnera (“lesões”, “feridas”), como ele mesmo explica:

“Pela justiça original, a razão continha perfeitamente as potências inferiores da alma, sendo ela mesma aperfeiçoada por Deus, a quem estava sujeita. Ora, essa justiça original perdeu-se pelo pecado do primeiro pai, como já dissemos (q. 81, a. 2). Por isso, todas as potências da alma ficaram, de certo modo, destituídas da ordem própria, pela qual naturalmente se orientavam para a virtude. E a essa destituição mesma se chama lesão da natureza.”
“Ora, são quatro as potências da alma capazes de serem sujeitos das virtudes, como já se disse (q. 61, a. 2), e são as seguintes. A razão, sujeito da prudência; a vontade, da justiça; o irascível, da fortaleza; a concupiscência, da temperança. Por onde, a lesão da ignorância consiste em a razão ter ficado privada de ordenar-se para a verdade. A da malícia, em a vontade ter ficado privada de ordenar-se, para o bem. A da fraqueza em o ter o irascível ficado privado de ordenar-se para o árduo. E enfim, a da concupiscência em o ter a concupiscência ficado privada de ordenar-se ao prazer moderado pela razão.”
“Por onde, são essas quatro as lesões infligidas a toda a natureza humana pelo pecado do primeiro pai.”[6]

Então, as quatro potências que são sujeitos das virtudes cardeais ficaram, após o pecado original, enfraquecidas: a razão, pela vulnus ignorantiae (“lesão da ignorância”), que põe o homem sob o perigo de enganar-se a si mesmo; a vontade, pela vulnus malitiae (“lesão da malícia”), que é uma tendência mais ou menos acentuada para a maldade; o apetite irascível, pela vulnus infirmitatis (“lesão da fraqueza”), que transfere a “energia interior” que se deveria usar na luta pelo árduo para a raiva e para a cólera; e o apetite concupiscível, pela vulnus concupiscentiae (“lesão da concupiscência”), que faz o homem trocar o deleite honesto nas coisas divinas pelos prazeres indecentes da carne.

Para vencer essas tendências, é preciso exercitar as quatro virtudes cardeais, a saber, a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. O livro “Um Olhar que Cura”[7] é uma tentativa de analisar e remediar essas tendências presentes no homem após a queda.

É importante destacar que o ensinamento da Igreja não é o que o pecado original tenha corrompido totalmente a natureza humana. Essa é uma tendência dos protestantes e dos jansenistas, que acham que do ser humano nada pode sair de bom. A doutrina católica, explicitada pelo Concílio de Trento, é que, “sendo ela [a concupiscência] deixada para o combate, não pode prejudicar os que não lhe dão consentimento e que a ela se opõem virilmente resistência com a graça de Jesus Cristo”[8].

A segunda razão para a penitência são as consequências de nossos pecados pessoais. O próprio Aquinate lembra que “a nossa inclinação para o bem da virtude fica diminuída pelo pecado atual”[9], ou seja, por “aquele que o homem, chegado ao uso da razão, comete por sua livre vontade”[10]. Uma pessoa que, antes de converter-se, viveu na devassidão, terá, evidentemente, mais dificuldades para viver a vida de virtude que uma que foi preservada disso. Por isso, precisa penitenciar-se, para não deixar que a “lei do pecado” nos seus membros o servilize, tornando-o novamente escravo da “fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes”. Diz São Paulo que “os que fazem tais coisas não herdarão o Reino de Deus”[11]. O combate contra o pecado é algo que jamais se pode negligenciar.

A terceira razão é a grandeza de nosso fim sobrenatural. A penitência é importante por conta da altíssima vocação dos cristãos, chamados a serem filhos de Deus. “Vós estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”, diz São Paulo: esse é o princípio básico da mortificação. O próprio Batismo trata-se de uma morte: entra-se na pia batismal como alguém que é sepultado e cuja vida, a partir de então, está no Céu. Para aspirar às coisas do alto e viver de modo digno a vocação recebida no Batismo, porém, é preciso desapegar-se das coisas deste mundo: “Fazei morrer aquilo que em vós pertence à terra: fornicação, impureza, paixão, desejos maus e a cobiça de possuir, que é uma idolatria”[12].

São João da Cruz, ao falar, na sua “Subida ao Monte Carmelo”, de pequenas imperfeições que nos impedem de progredir na vida espiritual, escreve que “pouco importa estar o pássaro amarrado por um fio grosso ou fino; desde que não se liberte, tão preso estará por um como por outro”[13]. Daqui a necessidade da penitência. Só por esse caminho é possível corresponder à nossa vocação à santidade, exercitando a virtude da magnanimidade, da qual se falou no último Programa Ao Vivo[14].

O quarto motivo para a mortificação é porque devemos imitar e seguir Nosso Senhor crucificado. Como escreve São Paulo, à comunidade de Corinto:

“Todavia, esse tesouro trazemo-lo em vasos de barro, para que todos reconheçam que esse incomparável poder pertence a Deus e não é propriedade nossa. Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Sem cessar e por toda a parte levamos no nosso corpo a morte de Jesus, a fim que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo”[15].

Por fim, é válido recordar que todas essas recomendações são importantes não apenas para o tempo da Quaresma, que se avizinha, como para toda a nossa vida. É incompreensível que queiramos ser santos, progredindo no amor, sem sofrimento e sem mortificações. Se olharmos para a vida dos grandes santos, veremos que todos fizeram grandes penitências e, justamente por isso, se tornaram mestres do amor. “Dá-nos muito ânimo – diz Santa Teresa de Ávila – vermos praticado por outros, com tanta suavidade, sacrifícios que nos parecem impossíveis de abraçar. Vendo seus altos voos, nós nos atrevemos a voar também. Como os filhotes das aves, quando o aprendem. Embora não se arrisquem logo a dar grandes voos, pouco a pouco imitam seus pais”[16].

Para vencer o nosso amor-próprio desordenado (filáucia), raiz de nossos pecados, só existe um caminho: penitência e oração. Não é uma questão de “dolorismo”, de massacrar-se, mas de amar. Não nos tornaremos pessoas verdadeiramente amantes de Deus se continuarmos seguindo a lei de nossa carne, que é fugir da dor e buscar o prazer. Não sem razão Jesus diz que “o Reino dos Céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam”[17].

Quando, porém, os homens se recusam a oferecer-se a Deus em sacrifício, a própria vida nesta terra transforma-se em um inferno. O egoísmo e a perversidade que imperam hoje são frutos da “cultura do analgésico”, que, recusando o patrimônio da pedagogia cristã, lança fora a necessidade da luta e da penitência para a autêntica elevação do homem. Este, influenciado pelo naturalismo, degrada-se cada vez mais. É que quando essa criatura, criada à imagem e semelhança de Deus, não é fiel à sua altíssima vocação, acaba por rebaixar-se mais que os próprios animais.

Corruptio optimi pessima est: de fato, nenhuma matilha de cachorros é tão desordenada e violenta quanto um bando de pessoas que abandona a Deus, assim como nenhum animal no cio é tão devasso quanto um homem afundado nos vícios. É assim porque o ser humano foi chamado às alturas. Nenhuma espécie se destrói por excesso de comida, bebida, sexo, vanglória ou presunção, senão a espécie humana. Olhando para a terrível situação de decadência do homem, torna-se palpável isto: “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á”.

Por outro lado, “quem perder a sua vida por amor vai salvá-la”. Penitenciemo-nos nesta Quaresma, mas jamais descuidemos da mortificação, pois o demônio e o pecado não tiram férias.

Referências

  1. Jo 12, 24-25
  2. Lc 9, 23
  3. Fl 3, 18
  4. A edição utilizada pelo Padre Paulo Ricardo é italiana, disponível para aquisição no site Amazon. Também é possível ler a obra na íntegra, em inglês, na Internet.
  5. Rm 7, 22-23
  6. Suma Teológica, I-II, q. 85, a. 3
  7. O livro “Um Olhar que Cura” está disponível para aquisição na loja virtual da Canção Nova. Há também o curso sobre doenças espirituais, no site, com o mesmo nome.
  8. Concílio de Trento, 5ª sessão, 17 de junho de 1546: Decreto sobre o pecado original. Cf. Denzinger-Hünermann, n. 1515
  9. Suma Teológica, I-II, q. 85, a. 3
  10. Catecismo de São Pio X, n. 946
  11. Gl 5, 19-21
  12. Cl 3, 3.5
  13. Subida ao Monte Carmelo, livro I, capítulo XI, n. 4. In Obras Completas, volume I, p. 29
  14. Programa Ao Vivo n. 79 – Oração: porta da santidade
  15. 2 Cor 4, 7-10
  16. Santa Teresa de Jesus. Castelo Interior ou Moradas. Terceiras Moradas, capítulo 2, n. 12. In São Paulo: Paulus, 2014. p. 67
  17. Mt 11, 12

Fonte: Padre Paulo Ricardo