Antropologia segundo Santo Irineu: Voltando às origens da existência humana

Estudar santo Irineu e sua antropologia é antes de tudo se deparar com pontos fundamentais proclamados pela própria fé cristã em relação ao ser humano, como a sua criação, a sua redenção e a sua salvação. Como já se pode perceber nessas poucas palavras, estudar santo Irineu é já um aprofundamento em uma visão antropológica que possui como base e perspectiva a pessoa de Cristo, Verbo de Deus feito carne (Jo 1, 14).

Neste simples texto, evidentemente, não iremos aprofundar e adentrar na densidade das reflexões antropológicas do santo, bispo, nascido em Esmirna (aproximadamente 130 d. C.) e martirizado na região onde hoje se situa a cidade de Lion, na França (202 d. C.), mas apenas enfatizar aspectos que no contexto atual poderiam enriquecer a nossa fé.

Para tanto, antes de começarmos, é necessário partir de certas prerrogativas ou pressupostos sobre o santo. Primeiramente, santo Irineu é um dos principais padres da Igreja antiga, ou seja, ele é um dos primeiros grandes escritores que, fiéis à Sagrada Tradição e às Sagradas Escrituras, contribuiu para renovar e enriquecer doutrinariamente a Igreja nascente. Uma das principais características do período patrístico, que será de especial importância para entendermos santo Irineu, é, de maneira geral, o caráter sintético dos ensinamentos, ou seja, não se possui uma clara divisão daquilo que pertence, por exemplo, à Teologia Fundamental, ou aquilo que pertence à Teologia dogmática, à Teologia Moral ou mesmo à Antropologia, e, no caso de Irineu, falar da sua Antropologia é também, necessariamente, falar da sua Cristologia, já que praticamente todas as suas reflexões são vistas através do paradigma da pessoa do Filho, Verbo de Deus encarnado.

A segunda caraterística também do período da patrística importante de ser ressaltada é o fato de que Cristo se constitui como a figura de referência do agir cristão. Ou seja, o homem, também no seu agir, é vocacionado à filiação, a ser filho no Filho, e, assim, no contexto de um seguimento-imitação, é chamado a percorrer um caminho, mediante a ação do Espírito, de redenção-divinização. Tanto na Tradição Ocidental, como também na Tradição Oriental é presente a ideia da transformação de todo o ser humano, como nos Le Guillou:

“A divinização deve ser pensada sob a forma de uma participação intencional de amor e de comunhão fundada sobre a causalidade da graça do ser divino. Deus habilita a sua criatura a entrar em relação com Ele: a veste da caridade transfigurando a liberdade do homem que o estabelece em uma comunhão intencional de conhecimento e amor.”

Segundo Guillou, portanto, a divinização é uma graça desejada por Deus e dada ao homem, Sua criatura, através do Espírito de amor, e fundada na dimensão filial, que transforma o homem por inteiro, transfigurando, por assim dizer, a sua liberdade. Tendo em consideração as duas características da patrística elencadas aqui, ou seja, o caráter sintético e a dimensão filiação-divinização do homem, podemos já iniciar a reflexão sobre a antropologia de Santo Irineu. Como bem nos mostra o título deste artigo, primeiramente, Irineu concebe a relação Deus-homem como a relação de criador-criatura. O homem é a obra por excelência de Deus, somente ele foi feito à Sua imagem e semelhança, destinado, assim, a dominar sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais e répteis da terra[2]. O homem, assim, é rei e coroa da criação sensível, centro do nosso mundo natural. O mundo sem o homem, este último vindo das mãos criadoras de Deus, é como uma casa sem dono.

Feito à imagem e semelhança

A principal e mais conhecida obra de santo Irineu é Adversus Haereses, na qual o santo mártire confronta as principais heresias do seu tempo. Importante ressaltar que não adentraremos com profundidade nas heresias e grupos gnósticos que o santo de Esmirna descreve e com impressionante clareza as refuta. No entanto, o que de modo comum pode ser enfatizado é que a maioria dos grupos heréticos descritos fazem parte do gnosticismo, uma das principais heresias do tempo, que, de modo geral, julgava com um demasiado sentido negativo o mundo corporal ou material. A matéria é ruim, o espírito, ao contrário, é bom. Como se percebe, a influência do platonismo é bastante evidente, e, para os gnósticos, portanto, a carne ou o corpo não é destinado a salvação, porque segundo eles, foi feito não pelo Deus bom, criador das coisas espirituais, mas pelo Demiurgo, uma entidade inferior.

Desta forma, Santo Irineu na sua antropologia refuta os gnósticos, sobretudo a sua conotação negativa dada à criação do mundo sensível, com a argumentação de que a criação é boa, porque foi criada pelo único Deus, Pai amoroso. Mas, o homem não é destinado a permanecer na dimensão da matéria: ele foi criado à imagem e semelhança de Deus. Ser criado à imagem e semelhança de Deus nos indica também o ato mesmo de ter sido criado (plasmado) pelo próprio Criador que, para santo Irineu, usou, por assim dizer, as suas duas “mãos”:

“Deus tem suas mãos: o Filho ou o Verbo, mão direita, e o Espírito, mão esquerda. O Pai, (…), não atua diretamente na demiurgia da matéria ou do plasma do homem. Princípio sem princípio, a Deus concerne dar subsistência à matéria amorfa do mundo, o barro virgem. Ao Verbo, mediante o qual todas as coisas foram feitas (Jo 1, 3), o corresponde – a título de Imagem (medida, forma) imprimir na matéria Suas próprias formas. Ao Espírito – a título de semelhança- convém alentar com suas virtudes aquilo que foi fabricado pelo Verbo, imprimindo Seu dinamismo (vivificante) no plasma humano”

Como se percebe, a antropologia de Santo Irineu nos remete às nossas próprias origens, às origens do homem, ao seu próprio processo de criação. Evidentemente, o santo usa de imagens especulativas que nos fazem imaginar não apenas um processo de “fabricação”, mas, acima de tudo, uma “fabricação” pelo amor e no amor, desejada, portanto, por Deus. “Façamos à imagem e semelhança”, o Pai convocava, assim, nas palavras de Antonio Orbe, o Filho e o Espírito para modelar com eles o humano corpo.

Acerca do ser imagem ( κατ’ εικόνα) de Deus, trata-se de uma imagem plástica[4], ou seja, diz respeito à figura, em sua figura se reflete o paradigma, como uma estátua é imagem plástica do personagem que representa. Não se trata, pois, de uma imagem pessoal, ou seja, aquela que em sua pessoa ou forma reflete a natureza circunscrita de outra, como, por exemplo o Verbo é, no âmbito divino, imagem pessoal do Pai. Assim, diz-nos Antonio Orbe:

“Deus, ao imprimir no corpo humano sua própria imagem, fez dele Sua imagem plástica do Verbo. O corpo humano é incapaz de outra. Em sua natureza de terra não pode representar – como imagem natural- a espiritual natureza de Deus. Representa, em vez, em seus lineamentos exteriores, como imagem plástica, os lineamentos corpóreos do Verbo, Imagem de Deus. (…). Para Deus todos os tempos são presentes. Ao dizer “Façamos o homem”, mirava o futuro. Na plenitude dos tempos Ele oferecia o Segundo Adão como paradigma para o primeiro”

Irineu não fala de uma antropomorfização de Deus. Mas, no seu sentido mais profundo, significa que o Verbo, através do qual o Pai criou todas as coisas, fez-se carne na plenitude dos tempos. Sendo Jesus o Verbo de Deus (Jo 1, 14-17), a própria criação do homem adquire sentido somente quando for concebida através do paradigma de Cristo, Filho de Deus.

Desta forma, a realização do homem se encontra na pessoa de Cristo e, de antemão, podem-se elencar duas conclusões: a primeira delas é que, ao modelar o homem da terra (Gn 2, 7), pensava Deus, como paradigma o corpo glorioso do segundo Adão. A segunda é que se inicia uma praxis destinada a consumar-se ao longo da história, por um processo que vai desde a sarx (carne, corpo) até a sarx gloriosa, segundo o paradigma de Cristo. Sobretudo a partir desta segundo conclusão, pode-se perceber o quanto antropologia e soteriologia em Irineu estão interligadas: conhecer o homem ­­é conhecer o seu destino, o seu fim, desejado por Deus; e, para compreender de maneira profunda este fim se faz necessário recorrer ou remontar às origens, ao iniciar do ato criador de Deus sobre o homem. Tanto o fim como inicio possuem como chave de compreensão o Verbo que se fez carne, Cristo, o Filho de Deus.

O Filho

A antropologia de santo Irineu tem como um dos pilares a obra de recapitulação, já presente também em São Paulo ( Ef 1, 10; Rm 5; 1 Cor 15, 45-48). Deus que recapitula em si a sua antiga criatura, que é o homem, para matar o pecado, destruir a morte e vivificar o homem (A.H III, 18, 7). O pecado original, que para Irineu se baseia sobretudo na desobediência do homem a Deus, interrompeu um processo de contínuo “assemelhamento” (kat’ ομοίωσιν ) do homem ao seu criador, através do Espírito. Em outras palavras, pode-se dizer que esta obra de “assemelhamento” é, antes de tudo, uma obra de perfeita comunhão de vida com Deus. Diz A. Orbe:

“A Economia da historia é entendida assim: na assimilação gradualmente incrementada pelo corpo humano, até a semelhança final, com perfeita comunhão de Espirito, da humana sarx com Deus: segundo o paradigma da Sarx gloriosa de Jesus”

Assim, pode-se também denominar a obra de recapitulação como obra de recriação: da mesma forma que Deus criador convocou o Filho (Verbo) e o Espirito para “criar” o homem, assim também ambos serão protagonistas da obra de redenção. Em outras palavras, a obra de recapitulação é uma obra de filiação, filiação do homem a Deus, através do Filho (Cristo Jesus).

Da mesma forma que a criação, para Irineu, é processual, ou seja, tem como base o trabalhar ou, utilizando uma imagem cara ao santo, a criação do homem é um modelar (como um artesão) de Deus sobre o plasma ou o barro da terra (Gn 1, 26), também o destino do homem repetirá, de certa forma, a obra criadora de Deus: o Pai também se servirá do Verbo e do Espírito para conformar lentamente, ao longo da história, o homem à medida do corpo glorioso do Filho.

Desta forma, torna-se evidente que, segundo Irineu, a vontade de Deus para o homem se traduz em um processo deífico. O homem, em outras palavras, é destinado a ser Deus, mediante o Filho. O homem é criado, em seu corpo, para ser “deus”, em comunhão de vida com o Pai, à imagem e semelhança do Cristo glorioso.

Reiteramos que a antropologia de Irineu é cristocêntrica: o homem somente é compreendido através de Cristo. Somado a isso, também se percebe, como dissemos, o relevo fundamental do aspecto corporal do homem, em contraposição ao que os “espiritualistas” gnósticos sustentavam. Dentro deste âmbito, também vem entendido que a própria salvação do homem se encontra em Cristo, na sua sarx gloriosa: o Salvador trouxe em sua presença de carne, através do mistério da Encarnação, toda a novidade que tinha de resplandecer na sarx dos homens.

Toda a economia da salvação se cumpre na Encarnação – recapitulação do Verbo. Cristo é solidário com a humanidade no realismo da sua carne (solidário por semelhança). Solidário com a humanidade enquanto a introduz, mediante o dom da filiação adotiva (…) A encarnação mostra verdadeiramente a imagem original cristológica do homem[8].

Por conseguinte, se adentramos em uma reflexão dentro do âmbito da teologia moral, o homem, no Filho, é chamado a viver uma vida plenamente humana, seguindo, a diretriz mesma do Verbo, que se traduz ou se expressa sobretudo no sermão da montanha, como lei moral nova: a moral de Cristo é uma moral do poder fazer em Cristo, que nasce de uma interioridade nova, porque Cristo é aquele que conduz o homem à comunhão com Deus.

Espírito

Papel relevante terá o Espírito na nova economia inaugurada por Cristo. Para compreender este papel, o próprio Irineu nos remete ao Antigo testamento, fazendo, então, um paralelo com o novo, ou, entre o Espírito profético e o Espírito de adoção:

“O mesmo Espírito de Deus, que no Antigo Testamento se deixava sentir como Espírito de profecia, passou ao Novo testamento como Espírito de filiação adotiva. No Antigo testamento, fazia dos justos, “profetas” do futuro Cristo, santificando-os por participação no Espírito (Santo e profético). No Novo testamento, faz dos justos “filhos adotivos de Deus”, santificando-os por participação no Espírito emanado na carne gloriosa do Verbo”

Desta forma, Irineu, além de refutar uma das heresias que contrapunha o Antigo Testamento ao Novo, estabelece, assim, uma grande unidade: o Espírito que falava através da boca dos profetas e preanunciava aquele que estava por vir, em Cristo, sobretudo, torna-nos filhos adotivos de Deus, e por isso  passa a ser chamado Espírito de adoção.

A obra, portanto, do filho (recapitulação) pressupõe o Espírito. O Espírito (Spiritus vivificans) é o Espírito de adoção. Da mesma forma que o Espírito veio em forma de pomba sobre Jesus no Jordão, o mesmo Espírito é derramado por Cristo sobre cada homem, tornando filho adotivo de Deus. Desta forma, tornam-se claro tanto a base da antropologia de santo Irineu como também o motivo pelo qual o verbo se fez carne: a fim de que o homem recebesse a adoção filial, tornando-se, pois, filho de Deus (A. H III, 19, 1, p. 278).

Filhos no Filho

Cristo, portanto, inaugura uma vida nova mediante o Espírito, aqueles que creem Nele gozam da filiação, não vivem mais como servos, mas como filhos, graças ao novo regime de adoção instaurado por Cristo. Desta forma, necessariamente se estabelece um juízo: positivo sobre aqueles que acolhem com fé Jesus, e negativo sobre aqueles que não o acolherem, como nos diz Jo 1, 10-12: “Ele era no mundo, e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. Veio para a sua gente, mas os seus não o acolheram. A quantos acolheram deu o poder de se tornarem filhos de Deus.”

Diante do que foi dito, tanto acerca do processo de criação do homem, como também através do seu processo de Redenção, compreende-se que a obra por excelência de Deus é  o homem, e a dignidade deste esta em ser filho no Filho, através do Espírito. O homem, assim, é chamado a habitar na Trindade e viver na sua vida um constante processo de divinização, que é, antes, a sua mais perfeita humanização, através do paradigma do Filho. Viver como filhos, eis a nossa vocação, e, portanto, o itinerário da nossa vida foi já traçado através da vida do Filho e dos seus ensinamentos.


Autor: Rodrigo de Negreiros Moura
Fonte: Parresia – Shalom