Era um dia bem frio de julho de 2020. Por volta das 7h30, eu chegava para mais uma visita correicional na Penitenciária III de Franco da Rocha (SP) juntamente com a neblina típica da geografia do lugar. A última parte do trajeto era uma subida bem íngreme cujo acesso só era permitido para carros oficiais ou parentes dos presos condenados que ali cumpriam sua pena em regime fechado, os quais costumavam madrugar na fila de atendimento.
No meio da subida, uma senhora carregava duas sacolas de mantimentos até o momento em que caiu e as coisas começaram a rolar ladeira abaixo. Pedi para o motorista parar o carro, abri a porta e saí para socorrê-la, enquanto o motorista também desceu para resgatar os pertences que se alojaram ao longo do meio-fio da rua.
Levamos a vítima da lei da gravidade para a enfermaria da penitenciária. O joelho ficou avariado e o enfermeiro providenciou os primeiros socorros. Enquanto ele fazia o curativo, ela se identificou como Maria (nome fictício). Estava ali para deixar algumas coisas para seu filho, José (nome fictício), condenado por roubo de carga à pena de 5 anos e 4 meses.
Ela desatou a desabafar sobre sua dura realidade – sustentava a nora, as três netas e trabalhava de domingo a domingo – enquanto a ouvia com atenção. Dizia que, apesar de seu filho ter cumprido apenas 1 ano da pena, ela aguardava, ansiosamente, pela progressão de regime dele. Lá pelas tantas, perguntei-lhe o que movia sua vontade para suas idas e vindas semanais até o cárcere do filho. Ela respondeu:
– A esperança. A esperança na redenção dele. Ele era réu primário. Envolveu-se com o pessoal errado e merece pagar por isso. Eu o avisei antes. Sem esperança ninguém consegue viver, não é?
Concordei com ela. Começou a chorar enquanto dizia que as lágrimas, embora a queimassem por dentro, consolavam sua dor de mãe. Ofereci-lhe um lenço. Emendei:
– Já leu alguma biografia de Santa Mônica? Ela foi mãe de Santo Agostinho e, durante anos, chorou copiosamente pela redenção do filho. Ela tem experiência no assunto. Pode lhe ajudar bastante. Leia também a carta do Papa Francisco para as mães dos presidiários de Roma. Tem umas palavras muito tocantes e uns conselhos muito úteis.
Seu olhar passou a seguir atentamente meus movimentos. Talvez, estivesse inusitada com toda aquela situação e com o teor de nossa conversa, pouco usual entre um juiz e a mãe de um preso. Na mesa, abri minha pasta de plástico tamanho A4 em que sempre levava os extratos dos andamentos das execuções dos presos que agendavam um horário comigo previamente nas visitas mensais. Tomei uma caneta e um pedaço de papel e anotei o nome do livro, autor e editora. Entreguei-lhe e me despedi dela imediatamente.
Passaram-se dois meses. Pareceram dois anos. Estava na iminência de um quadro depressivo, motivado por problemas de saúde, familiares e profissionais. Estes aqui foram os que mais me desgastaram à época. As cúpulas dos tribunais superiores resolveram endossar várias das pautas globalistas sem qualquer tipo de crítica.
Para mim, aquilo era o prenúncio de tempos politicamente corretos na magistratura e, como efeito, representava uma espécie de sepulcro profissional: não aceitava aquilo de jeito nenhum, porque, mais cedo ou mais tarde, minha independência funcional diminuiria consideravelmente e procurava uma saída em que pudesse me dedicar exclusivamente à atividade docente que, até então, dividia com o tempo forense. Entretanto, ainda não tinha tempo suficiente para a aposentadoria proporcional, embora já tivesse 22 anos de carreira.
Voltei à penitenciária. Dessa vez, na minha pasta plástica, havia mais extratos que a média e antevia a necessidade de um tempo maior para conversar com os presos. Todavia, minha cabeça já não estava boa, gastava um bom tempo em tratamento médico, minhas esperanças de uma saída profissional já tinham ficado para trás e meu sincero desejo, naquele dia, era o de simplesmente cumprir burocraticamente toda aquela visita correicional. Sumir dali o mais rápido possível.
De repente, surgiu na fila um tal de José. Ele disse:
– Bom dia! Vim aqui para lhe agradecer.
Respondi que não havia entendido.
– Então é verdade mesmo! Minha mãe me disse que o senhor tinha um adesivo do Sepultura (banda brasileira de metal de renome mundial) na sua pasta de documentos que estava sobre a mesa. Eu lhe trouxe aqui uma lembrança.
Tirou do bolso um papel dobrado umas quatro vezes. Abriu como se estivesse desembrulhando um presente e me mostrou.
– Sou o filho da senhora que o senhor socorreu na última vez que passou por aqui. É a letra de uma música da banda feita por mim em caligrafia artística. O diretor conseguiu um curso para nós e, como gosto de escrever estórias, resolvi me matricular. Pode ser uma fonte de renda quando sair daqui.
Quando peguei o papel, sentei e não acreditei. Para uma alma crente, não existe espaço para coincidências. Ali, claramente, senti o sopro divino. Passei os olhos naquela música, composta no último álbum da banda à época – Quadra, em homenagem ao quadrivium medieval –, justamente uma das melodias mais bonitas – Agony of defeat – daquele trabalho, ouvidas tantas vezes. Contudo, até então, não tinha me atentado afetivamente para o teor da letra, aqui traduzida livremente, e que, no final das contas, trouxe luz para meu dilema pessoal:
“As dúvidas estão fervilhando na minha cabeça / No fundo do limbo / Eu tento o meu melhor para florescer / Lute pelas respostas (…)”
“Procuro por uma razão / Esperança morrendo lentamente / Eu estou preso, lidando com o exterior (,,,)”
“Tente encontrar um caminho / Para abraçar a dor / Tente encontrar um caminho / Para abraçar a vontade divina” (…)
Numa realidade tão árida como a de uma penitenciária, nossa tendência, como em todo ambiente altamente burocratizado, é o de ver as pessoas que nos servem como funções. Não é José, mas o preso da matrícula número tal. Não é Joana, mas a “tia do café”. E assim por diante. Como se santificar num local assim? Um bom começo está em tratar os outros com um olhar pelo qual não sejam vistos como meros indivíduos funcionais, porém como pessoas com nome e sobrenome, pessoas que são mundos inteiros e irrepetíveis e que demandam um fitar que as olhem como se Cristo estivesse em nosso lugar. O outro não é só um alguém, mas um “alguém pessoal”.
Resumir tudo ao funcional torna tudo impessoal e, ao cabo, pouco ou nada comunicacional ou relacional. Quando temos esse olhar mais fecundo, esse mesmo olhar retorna para nós mesmos, ainda que por outros caminhos: eu ansiava por uma resposta para uma crise pessoal cuja resolução passou pelas linhas esteticamente caligrafadas de um preso que quis tão apenas retribuir as sugestões dadas para a mãe dele acidentalmente.
Porque, como aprendi com São Josemaria, o olhar que dirijo ao outro é o olhar que faço de mim mesmo. Naquele dia, antes de me despedir do José, ele me disse que sua mãe tinha lido apenas a biografia, porém, tinha até criado um grupo de mães de presos para partilharem experiências, dores e esperanças. O bem realmente é difusivo, já dizia Tomás de Aquino.
Alguns meses depois, deixei o departamento de execução criminal. Nunca mais encontrei o José para lhe agradecer o outro “presente” recebido. Ele me mostrou, na prática, que os caminhos terrenos são divinos. Espero que, hoje, já cumprido sua pena, esteja no conforto de seu lar com seus pares, depois de ter se redimido ao não se fechar em seu passado. Mal sabe ele que não só redimiu a si mesmo, mas meu dilema também, o outro “presente”: ao abraçar a dor e a vontade divina cantadas na música, Deus pavimentou, anos depois, a Seu amoroso modo, a saída que tanto buscava.