“Então, eu ouvi um outro som, desta vez um gemido indisfarçável, seguido de um som agudo enquanto alguém gritava: ‘Deixa-me em paz, Jesus! Por que me torturas?’”
A “rotina” pode fazer com que, muitas vezes, percamos um pouco a noção do que sejam a Santa Missa, a Eucaristia e a recepção da Comunhão sacramental. Os abusos litúrgicos que acontecem, aos montes, em tantas de nossas paróquias também acabam não contribuindo muito para fazer brilhar o mistério que aí se realiza. O seguinte testemunho do Mons. Charles Pope no entanto, talvez nos ajude a considerar melhor a grandeza do que estamos a celebrar nesta semana de Corpus Christi:
Foi quase 15 anos atrás, na velha igreja de Santa Maria, aqui no Distrito de Columbia, celebrando Missa em latim (na Forma Extraordinária do Rito Romano). Era uma Missa solene […na qual] algo bem interessante estava prestes a acontecer.
Como vocês devem saber, a antiga Missa em latim é celebrada ad orientem (isto é, voltada ao “leste litúrgico”). O padre e todo o povo voltam-se para a mesma direção. O que isso significa para o celebrante, na prática, é que o povo fica às suas costas. Era o momento da consagração. Nessa hora, o padre deve fazer uma leve inclinação, com seus antebraços sobre a mesa do altar e a Hóstia em seus dedos.
Também como deve ser, as veneráveis palavras da consagração foram ditas em voz baixa, mas clara: Hoc est enim Corpus meum (“Isto é o meu Corpo”). A sineta tocava enquanto eu me ajoelhava.
Mas atrás de mim notei uma espécie de perturbação; uma voz agitada ou como um sussurro veio dos primeiros bancos atrás de mim, à minha direita, e então um gemido ou murmúrio. “O que foi isso?”, eu me perguntei. Não se parecia mesmo com um som humano; parecia mais o grunhido de um grande animal, como um javali ou um urso, juntamente com um resmungão que também não parecia humano. Elevei a Hóstia e novamente me perguntei: “O que foi isso?” Silêncio, então. Como celebrante na antiga Missa latina, não me era fácil virar para olhar. Mas eu ainda pensava: “O que foi isso?”
Era o momento da consagração do cálice. Mais uma vez eu me inclinei levemente, pronunciando clara e distintamente, mas em voz baixa: Hic est enim calix sanguinis mei, novi et aeterni testamenti; mysterium fidei; qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum. Haec quotiescumque feceritis in mei memoriam facietis (“Tomai e bebei dele todos vós, pois este é o Cálice do meu Sangue, do Sangue da nova eterna aliança, mistério da fé, o qual será derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados. Todas as vezes que isto fizerdes, fazei-o em memória de mim”).
Então, eu ouvi um outro som, desta vez um gemido indisfarçável, seguido de um som agudo enquanto alguém gritava: “Deixa-me em paz, Jesus! Por que me torturas?” De repente irrompeu um ruído como de uma briga e alguém saiu gemendo como se tivesse sido machucado. As portas se abriram e fecharam. Depois, silêncio.
[…] Eu não podia virar para olhar pois estava elevando o Cálice bem acima da minha cabeça. Mas eu percebi naquele instante que uma pobre alma atormentada pelo demônio havia se deparado com Cristo na Eucaristia e não podia suportar sua presença real sendo exibida para todos verem. Vieram-me à mente, então, as palavras da Escritura: “Até os demônios crêem, e tremem” (Tg 2, 19).
[…] Mas assim como São Tiago usou essas palavras para recriminar a pouca fé de seu rebanho, também eu tinha com o que me acusar. Por que um homem perturbado pelo demônio estava mais consciente da Presença Real e mais impressionado por ela do que eu estava? Ele ficou movido em um sentido negativo e fugiu. Por que não estava eu mais movido do que ele, em um sentido positivo? E quanto aos outros fiéis, que estavam nos bancos? Eu não duvido de que todos ali acreditávamos, com a inteligência, na Presença Real. Mas é algo bem diferente e muito mais belo ser movido até as profundezas da própria alma! É tão fácil ficarmos sonolentos na presença do Divino, esquecendo-nos da Presença milagrosa e impressionante que está à nossa disposição.
Registre-se que, naquele dia, quase 15 anos atrás, ficou ainda mais claro para mim que eu segurava em minhas mãos o Senhor da glória, o Rei dos céus e da terra, o justo Juiz e Dominador dos reis da terra. — Estaria o Senhor verdadeiramente presente na Eucaristia? — É melhor que você acredite, pois até os demônios o fazem!
Ao ler o relato desse sacerdote, é inevitável que nos venham à mente os inúmeros trechos do Evangelho em que os demônios reagem de modo muito similar à presença de Nosso Senhor. Em comentário a essas passagens, os Doutores da Igreja nos ensinam que, embora não tenham fé divina e sobrenatural, os maus anjos têm um certo conhecimento da divindade de Cristo, e por isso não lhe podem ser indiferentes. Santo Agostinho diz, por exemplo, que Jesus se manifestou aos demônios “não enquanto vida eterna e luz que ilumina os piedosos, mas por certos efeitos temporais de seu poder e por sinais ocultos de sua presença, mais perceptíveis aos espíritos angélicos, mesmo que malignos, do que à fraqueza humana” [1]; e São Jerônimo, por sua vez, que “tanto os demônios como o Diabo mais suspeitavam do que compreendiam que Ele era o Filho de Deus” [2].
Ou seja, os mesmos espíritos malignos que dois mil anos atrás reagiam com fúria e gritos à presença do Deus feito carne, são retratados respondendo com igual ódio e indignação à presença real de Jesus na Eucaristia. Que o fato acima seja verídico ou não, é o de menos: ninguém é obrigado a crer nas palavras de um padre. Mas ao ensino do Senhor e da sua Santa Igreja de que, “sim, na Eucaristia está verdadeiramente o mesmo Jesus Cristo que está no Céu e que nasceu, na terra, da Santíssima Virgem Maria” [3] — nisto sim, todos estamos obrigados a crer, por fidelidade a Deus revelante, que não se engana nem nos pode enganar.
“Problemático” falar disso, não? Pouco “ecumênico”, alguém diria. Mas não é de hoje: as palavras de Cristo sobre sua presença no Santíssimo Sacramento, desde o discurso do pão da vida até as recentes manifestações magisteriais sobre a Eucaristia, sempre foram uma grande “pedra de tropeço”. — Que haja quem acredite piamente que o próprio Deus, Criador do céu e da terra, se fez homem, já é grande absurdo… — assim pensa o mundo. — Agora, que haja, nesse grupo já seleto de pessoas, um grupo mais ousado ainda a ponto de proclamar que Deus, além de se fazer homem, ainda se esconde sob a aparência de um simples pedaço de pão, é escândalo em cima de escândalo.
Aquele grupo que crê na Encarnação são os cristãos; este grupo que crê também na transubstanciação são os católicos. De modo que, se para o mundo, os cristãos já são loucos, para os próprios cristãos, nós, católicos, somos o ápice da loucura. Por crermos na Eucaristia, os protestantes nos têm por fanáticos e idólatras, que se prostram diante de uma “bolacha”; por causa desse dogma em especial, somos “como que o lixo do mundo, a escória de todos” (1Cor 4, 13).
E como os católicos somos chamados a reagir a tudo isso? Com luto, lágrimas e depressão? Não, muito pelo contrário!
Neste dia de Corpus Christi, somos convocados, isso sim — principalmente por se tratar de dia de preceito —, a tomar as ruas de nossas cidades e, cheios de fé, proclamar nosso amor ao Santíssimo Sacramento com orações, cantos e muita alegria. Alegria principalmente por saber que o mesmo Jesus de Nazaré, que caminhou entre os homens dois mil anos atrás, continua realmente vivo em nossas igrejas, “habitando no meio de nós” todas as vezes que o sacerdote católico pronuncia as veneráveis palavras da consagração: “Isto é o meu corpo” e “Este é o cálice do meu Sangue”. Alegria por saber que, assim como Cristo, cabeça da Igreja, teve de passar por sua via crucis recebendo o desprezo do mundo, agora é a vez dos católicos, enquanto membros do seu corpo, passarem pela mesma execração pública.
Mas, ainda que nos ataquem com virulência, que nos chamem de idólatras e caçoem de nossa santa religião — mesmo se com isso os zombadores acabem se assemelhando aos demônios do Evangelho, e da história acima contada —, só o que nos deve encher o coração é um profundo desejo de que todos, sem exceção, venham a desfrutar um dia da mesma dádiva que nós, católicos, temos a graça de possuir… porque deve ser uma tremenda miséria entrar em um templo cristão e não ver, ao fundo, ocupando o centro de todas as atenções, a presença eucarística de Nosso Senhor Jesus Cristo, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade.