As Escrituras dizem que “o temor de Deus é o princípio da sabedoria” (Sl 110, 10) e a Igreja, por sua vez, enumera este como um dos sete dons do Espírito Santo.
A alguns ouvidos, porém, a expressão “temor de Deus” pode soar estranha. O que ela realmente significa? Por acaso devemos “sentir medo” de Deus? Não seria isso contrário ao mandamento do amor, que é o maior de todos os preceitos?
A resposta precisa a esses questionamentos todos podemos encontrar, como de costume, na obra de Santo Tomás de Aquino. Antes de apreciarmos o que o Aquinate diz a respeito desse assunto, no entanto, permita-nos compartilhar com vocês, leitores, a grande alegria de pertencer a esse edifício maravilhoso que é a Igreja de Cristo. Não é confortante descobrir que as dúvidas que encontramos em nossa caminhada na Fé já foram respondidas pelos místicos e doutores da Igreja, e que nós não precisamos “construir” nem “inventar” coisas novas? Que Deus não só inspirou os autores da Bíblia, mas também os seus intérpretes, para que pudéssemos chegar todos ao conhecimento da Verdade?
Como é bom viver na segurança da doutrina católica de dois mil anos!
Mas retomemos o fio da meada.
Em primeiro lugar, o testemunho das Escrituras é muito claro: Deus deve sim ser temido. Para confirmá-lo, Santo Tomás cita pelo menos dois versículos bíblicos: “Quem não te temerá, ó Rei das nações?” (Jr 10, 7) e “Se eu sou o Senhor, onde está o temor que me é devido?” (Ml 1, 6).
É óbvio que não vale, para contradizer essas passagens, dizer que elas “estão no Antigo Testamento”, como se as palavras que Deus inspirou aos patriarcas e profetas valessem menos que as do Novo; ou como se o Deus de Abraão, Isaac e Jacó fosse diferente do Deus que se fez carne e veio fazer morada no meio dos homens — Jesus Cristo. O que precisamos fazer, como bons católicos, é ler em sintonia tanto as páginas do Velho quanto as do Novo Testamento. Se algo parece entrar em contradição — coisa que acontece não poucas vezes a quem tem o hábito de ler e meditar as Escrituras —, “mãos às obras” dos bons teólogos, que são os santos. Eles podem nos ajudar a compreender o que diz a Palavra de Deus.
Perguntemos, pois, de modo diferente: como deve Deus ser temido?
A resposta do Doutor Angélico é de uma clareza cristalina. O temor é algo colocado nos seres humanos para que eles fujam do mal. Ora, Deus é o sumo Bem, não devendo ser temido, portanto, como se fosse um assaltante ou uma pessoa má, mas só enquanto “podemos ser ameaçados de um mal, quer proveniente dele, quer relativamente a ele” [1]: quer um castigo nesta vida, portanto, quer a separação de Deus, que acontece quando caímos na desgraça do pecado mortal.
A melhor analogia para entendermos em que consiste o temor de Deus é considerar a obediência que devemos aos nossos pais, especialmente se ainda moramos na mesma casa que eles. Podemos temer uma punição que venha de suas mãos, caso façamos algo de errado (temor servil); ou mesmo temer que sejamos separados deles, já que os amamos e queremos bem (temor filial). Aquele primeiro temor, explica o pe. Royo Marín, “ainda que imperfeito, é bom em sua substância, já que nos faz evitar o pecado e se ordena a Deus como fim” [2]. Todos os cristãos, porém, precisamos sair desse estágio para vivermos plenamente nossa vocação de filhos de Deus, que cumprem os Mandamentos não simplesmente por temerem o chicote, mas principal e predominantemente por amarem a Deus.
É nesse sentido que São João afirma que “o perfeito amor lança fora o temor, pois o temor implica castigo, e aquele que teme não chegou à perfeição do amor” (1 Jo 4, 18); e que Santa Teresinha do Menino Jesus, já ao final de sua vida, confessa: “Não posso temer a um Deus que se fez tão pequenino por mim… Amo-o!… Pois ele é só Amor e Misericórdia!” [3].
O temor filial, no entanto, é um dom do Espírito Santo e integra o organismo espiritual que nos faz amigos de Deus. Por isso, os santos — todos eles, sem exceção — temeram ao Pai do Céu. Evidentemente, não com o temor de Adão e Eva, que se esconderam da face divina por verem nEle um inimigo ou um adversário (cf. Gn 3, 8). O sadio temor de Deus é o que tinha a Virgem Maria, que proclamou em seu Magnificat: “Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem (timentibus eum)” (Lc 1, 50).
Santo temor de Deus é o que tinha São João Maria Vianney, quando rezava:
“Eu Vos amo, Senhor, e a única graça que Vos peço é a de amar-Vos eternamente.
Eu Vos amo, meu Deus, e desejo o céu para ter a felicidade de Vos amar perfeitamente.
Eu Vos amo, meu Deus infinitamente bom, e temo o inferno porque lá não haverá nunca a consolação de Vos amar.” [4]
Santo temor a Deus possuía, por exemplo, São João de Ávila, a quem é atribuído este famoso soneto a Cristo crucificado:
Não me move, meu Deus, para querer-te
O céu que me hás um dia prometido;
E nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de ofender-te.Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
Cravado nessa cruz e escarnecido
Move-me no teu corpo tão ferido
Ver o suor de agonia que ele verte.Moves-me ao teu amor de tal maneira,
Que a não haver o céu ainda te amara,
E a não haver o inferno te temera.Nada me tens que dar porque te queira;
Que se o que ouso esperar não esperara,
O mesmo que te quero te quisera.
Essas orações, feitas por pessoas de grande caridade, mostram como o temor filial, ao contrário do servil, anda sempre de mãos dadas com o amor. Quem ama, afinal, está unido à pessoa amada — já que a união é o ato próprio do amor — e a coisa que mais teme é ver-se separado do objeto amado. Por isso, São Domingos Sávio, desafiando o mundo, assumia o compromisso de “antes morrer do que pecar“, tão grande era o seu amor a Deus e o medo de perder a sua amizade pelo pecado.
Quanto a nós, procuremos trilhar o mesmo caminho de amor que seguiram os santos, determinando-nos a perder tudo para não ofendermos a Deus, que é o único verdadeiro Bem de nossas almas. Até que, no Céu, não nos reste senão o temor reverencial de criaturas, uma vez que estaremos permanentemente unidos a Deus, e desta vez para sempre, sem possibilidade nenhuma de separação.