Opção preferencial pela Eucaristia

O pontificado do Papa Bento XVI ficou marcado na história recente da Igreja por uma atenção especial à Sagrada Liturgia. Ao longo dos oito anos em que esteve no Trono de Pedro, vimo-lo não só reforçar as normas litúrgicas vigentes, como resgatar várias práticas antigas, que — por sua natureza e segundo a opinião de renomados liturgistas — contribuíam para uma melhor manifestação do mistério eucarístico e da “autêntica natureza da verdadeira Igreja”, como pede o Concílio Vaticano II [1].

O Sacramento da Eucaristia, ensina a Santa Igreja, é a “fonte e o ápice” da vida cristã [2]. Nele se encontra a totalidade de Cristo — corpo, sangue, alma e divindade —, de modo que aquele que o recebe, acolhe no próprio ser a pessoa do Filho de Deus; torna-se, assim, um sacrário vivo. À medida em que os cristãos foram se conscientizando dessa realidade (e com o surgimento de heresias contrárias à doutrina da transubstanciação), a Igreja achou necessário enriquecer o culto eucarístico com gestos e símbolos que melhor reverenciassem a grandeza de tão excelso mistério.

Atualmente, essa visão tradicional sobre a Eucaristia e sua devida celebração não é mais aceita com muita facilidade. Por causa de uma mentalidade ecumenista, é comum encontrarmos certa timidez — senão mesmo ojeriza — a tudo o que possa ser interpretado como exagero ou triunfalismo. Pede-se, ao contrário, que a devoção à Eucaristia seja resumida ao essencial, a fim de evitar “uma errônea confusão entre o Cristo histórico, como dizem, que viveu na terra, o Cristo presente no augusto sacramento do altar, e o Cristo triunfante no céu e dispensador de graças” [3].

Fica evidente a falsidade de tal pensamento, quando se lhe confronta a verdadeira doutrina católica, para a qual o Cristo da Fé e o Jesus histórico são uma única e mesma pessoa, o Verbo de Deus encarnado: é o único “Filho de Maria virgem, que sofreu na cruz, que está presente e oculto na eucaristia, e que reina no céu” [4]. Longe de induzir a erros, como temem alguns, as devoções eucarísticas — procissões, bênçãos e adorações perpétuas — fortalecem a convicção católica de que Cristo, no sacrifício da cruz, venceu a morte e abriu novamente as portas do Céu a nós. Uma liturgia bem celebrada não se trata, pois, de atitude triunfalista ou exagerada, mas de expressão autêntica da alegria do Evangelho, da graça da salvação que chegou ao homem por meio da cruz.

Uma fórmula consagrada de Santo Tomás de Aquino justifica nossa posição: Quantum potes, tantum aude. Trata-se de uma expressão retirada de um dos mais belos hinos eucarísticos do Doutor Angélico e que significa “ousar tudo o que puder para tributar-lhe o louvor devido”. A mensagem é clara. O fiel não pode ser tímido na hora de dedicar seu louvor ao Senhor. Deve, por assim dizer, fazer a boa obra da mulher do Evangelho, lavando os pés de Jesus “com perfume muito caro” e, depois, enxugando-os com os próprios cabelos (cf. Mt 26, 11). Ela muito amou.

Santos reverenciados por uma vida de austeridade e pobreza não economizaram na hora de adorar o Santíssimo Sacramento. Os biógrafos de São João Maria Vianney contam-nos que uma das primeiras atividades dele na aldeia de Ars foi reformar a igreja, tornando-a mais bela e ornamentada, de modo a indicar mais claramente a Majestade que nela habitava dentro do Sacrário. “Se os palácios dos reis são embelezados pela magnificência das entradas, com maior razão as das igrejas devem ser suntuosas… Não quero poupar nada para isso”, defendia o santo pároco aos fiéis [5].

A mesma atitude encontra-se em São Francisco. O poverello de Assis, comumente conhecido pela sua dedicação aos pobres e pelo amor à criação, possuía um zelo pela Eucaristia quase inaudito nos dias de hoje. Eis o que suplicava aos clérigos e confrades:

“Eu vos rogo, mais do que por mim mesmo, que, quando for conveniente e virem que é oportuno, supliqueis humildemente aos clérigos, que devam venerar sobre todas as coisas o santíssimo corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo e seus santos nomes e palavras escritas que consagram o corpo. Devem ter preciosos os cálices, corporais, ornamentos do altar e tudo que pertence ao sacrifício. E se em algum lugar estiver colocado pauperrimamente o santíssimo corpo do Senhor, que por eles seja posto em lugar precioso e fechado à chave, de acordo com o mandato da Igreja, e seja levado com grande veneração e administrado aos outros com discrição.”

(…)

“Por isso, rogo a todos vós, irmãos, com o beijo dos pés e com a caridade que posso, que manifesteis toda reverência e toda honra, tanto quanto puderdes, ao santíssimo corpo e sangue do Senhor nosso Jesus Cristo.” [6]

A base de toda essa apologia à Eucaristia deve-se, entre outras razões de igual ou maior importância, a uma máxima bastante popular dentro da Igreja: a opção preferencial pelos pobresJesus Eucarístico é o Pobre dos pobres, que se desfaz de toda a sua dignidade ao assumir a aparência de uma frágil partícula de pão, pelo que se coloca aos cuidados do ser humano. De fato, aqueles santos só puderam cuidar dos mais necessitados porque, antes, cuidaram com paixão e fervor do maior de todos os necessitados. Segundo explica Dom Athanasius Schneider, a tutela dos direitos dos pobres torna-se “mais credível e meritória aos olhos de Deus” quando “acompanhada pela defesa atenta e amorosa de Jesus Eucarístico, na medida em que Ele é verdadeiramente, nos nossos dias, o pobre por excelência, o mais frágil e o mais indefeso no momento da distribuição da comunhão” [7].

Fica-nos claro agora por que Bento XVI, na esteira do que já havia pedido seus imediatos predecessores (Paulo VI, na Encíclica Mysterium Fidei, e João Paulo II, na Encíclica Ecclesia de Eucharistia), deu tanta importância à Liturgia, chegando mesmo a sugerir uma reforma da reforma litúrgica. Com justa razão, ele compreendia a Eucaristia como “a escola da vida reta”: “Com seus ensinamentos, ela nos leva para perto daquele que era o único que podia dizer ‘eu sou o caminho, a verdade e a vida'” [8]. Ela está na origem de toda ação social, de toda compaixão e piedade. Atestam-nos os testemunhos de Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, São Pio de Pietrelcina e tantos outros santos. A verdadeira devoção externa à Eucaristia nasce precisamente de uma devoção interior, na qual o coração do fiel é deveras a mais bela das catedrais e o mais belo dos sacrários, conforme o que explica Jesus nas Sagradas Páginas: “A boca fala do que está cheio o coração” (cf. Mt 12, 34). Por isso, faz-se importante a restauração de alguns elementos de devoção eucarística, infelizmente, abandonados nos últimos anos.

É verdade que a expressão reforma da reforma litúrgica não é bem vista em alguns ambientes. Como em outras ocasiões, pretendemos ser muito claros neste assunto. A reforma litúrgica à qual aludimos é a mesma defendida pelo Cardeal Joseph Ratzinger no livro Introdução ao Espírito da Liturgia, obra, aliás, de suma importância para o Movimento Litúrgico.

Esse projeto impulsionado pelo então cardeal, longe de constituir um ataque ao Missal de Paulo VI ou ao Concílio, tem por objetivo proporcionar a autêntica renovação espiritual auspiciada pelos padres conciliares, a qual, por meio de interpretações equivocadas, foi, de muitas maneiras, sufocada [9]. Ora, condenar tal projeto a pretexto de uma ideia superficial de “que nada no Missal jamais poderá ser mudado, como se qualquer reflexão a respeito de possíveis reformas futuras fosse necessariamente um ataque ao Concílio — a uma tal ideia, respondeu Ratzinger a seus críticos, eu só poderia dar o nome de absurda” [11].

Antes de morrer, São João Paulo II deixou-nos um verdadeiro testamento espiritual com a Encíclica Ecclesia de Eucharistia, a derradeira de seu pontificado. Neste documento, o Santo Padre insiste que “não há perigo de exagerar no cuidado” que dedicamos à Eucaristia, “porque, ‘neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação'” [12]. Está na hora de levarmos a sério o Magistério deste grande santo de nossa época. A liturgia não é um rito qualquer, mas a máxima expressão com que traduzimos toda nossa fé no tão sublime sacramento da Eucaristia, o mysterium salutis.


Fonte: Padre Paulo Ricardo
Referências
  1. Concílio Vaticano II, Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (4 de dezembro de 1963), n. 2. Dentre os inúmeros artigos e livros a respeito da chamada reforma da reforma de Bento XVI, tem lugar de destaque o opúsculo de seu mestre de cerimônias, Monsenhor Guido Marini. No Brasil, a obra foi publicada pela editora Paulus, sob o título de Liturgia: mistério da salvação.
  2. XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Lineamenta: A Eucaristia: fonte e ápice da missão da Igreja (25 de fevereiro de 2004).
  3. Papa Pio XII, Carta Encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947), n. 120.
  4. Idem.
  5. TROCHU, Francis. O Santo Cura d’Ars. 3. ed. Contagem: Editora Líttera Maciel Ltda., 1997, p. 128.
  6. Carta aos Custódios, 2-4 (FF, 241); Carta a toda a Ordem, 12 (FF, 217).
  7. SCHNEIDER, Athanasius. Corpus Christi: A Sagrada Comunhão e a Renovação da Igreja. São Paulo: Editora Imaculada, 2014, p. 109.
  8. RATZINGER, Joseph. Ser Cristão na era neopagã. Vol I: Discursos e homilias (1986-1999). 1a. ed. Campinas: Ecclesiae, 2014, p. 59.
  9. Papa Bento XVI, Discurso ao clero de Roma (14 de fevereiro de 2013): Agora quero acrescentar ainda um terceiro ponto: havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de comunicação, que era quase um Concílio aparte. E o mundo captou o Concílio através deles, através dos mass-media. Portanto o Concílio, que chegou de forma imediata e eficiente ao povo, foi o dos meios de comunicação, não o dos Padres. E enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da fé […], o Concílio dos jornalistas, naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas dentro das categorias dos meios de comunicação atuais, isto é, fora da fé, com uma hermenêutica diferente […] E o mesmo se passava com a liturgia: não interessava a liturgia como ato da fé, mas como algo onde se fazem coisas compreensíveis, algo de atividade da comunidade, algo profano. E sabemos que havia uma tendência — invocava mesmo um fundamento na história — para se dizer: A sacralidade é uma coisa pagã, eventualmente do próprio Antigo Testamento. No Novo, conta apenas que Cristo morreu fora: fora das portas, isto é, no mundo profano. Portanto há que acabar com a sacralidade, o próprio culto deve ser profano: o culto não é culto, mas um ato do todo, da participação comum, e deste modo a participação vista como atividade. Estas traduções, banalizações da ideia do Concílio, foram virulentas na prática da aplicação da reforma litúrgica; nasceram numa visão do Concílio fora da sua chave própria de interpretação, da fé.
  10. Cardeal Joseph Ratzinger, “Réponse du Cardinal Ratzinger au Père Gy”. in La Maison-Dieu 230.2 (2002) 113-20.
  11. João Paulo II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de 2003), n. 61.