É chegado o momento de analisar até quando se estende o Tempo da Páscoa.
Se agora, por um lado, o rito reformado de Paulo VI é tido por “expressão única da lex orandi do Rito Romano” (segundo a Carta Traditionis Custodes), nem por isso o usus antiquior deixou de “gozar da devida honra pelo seu uso venerável e antigo” (segundo a Carta Summorum Pontificum), até porque ele continua a ser celebrado em vários lugares, ainda que tenham aumentado as restrições.
Dito isto, examinemos primeiro o que dizem as Rubricæ generales dos livros litúrgicos promulgados por João XXIII (e adotados hoje pelos fiéis da Missa Tridentina):
76. O tempo pascal decorre do início da Missa da Vigília pascal até a [hora] Nona do sábado na oitava de Pentecostes, inclusive. Deste modo o intervalo de tempo compreende:
a) [o] tempo da Páscoa, que decorre do início da Missa da Vigília pascal até a [hora] Nona da vigília da Ascensão do Senhor, inclusive;
b) [o] tempo da Ascensão, que decorre das I Vésperas da Ascensão do Senhor até a [hora] Nona da vigília de Pentecostes, inclusive;
c) [a] oitava de Pentecostes, que decorre da Missa da vigília de Pentecostes até a [hora] Nona do sábado seguinte, inclusive.
Assim era dividida a Páscoa, mas talvez o melhor sistema para explicar este tempo litúrgico e suas divisões seja o de círculos concêntricos. Já apresentamos este modelo quando falamos do ciclo do Natal: depois da festa da Natividade propriamente dita, seguem-se a Oitava, os doze dias que vão até a Epifania e, por fim, os quarenta dias que o separam da festa da Apresentação do Senhor. Com a Páscoa acontece algo semelhante, só que ainda mais vasto (dado tratar-se de uma solenidade de maior importância): depois do domingo de Páscoa, há a sua Oitava, os quarenta dias que vão até a Ascensão do Senhor, os cinquenta dias que vão até Pentecostes e depois, ainda, os dias da Oitava de Pentecostes.
Isso tudo sem falar do Tempo depois de Pentecostes, que de alguma forma prolongava a festa do Espírito Santo, e da própria preparação para a Páscoa, que no calendário antigo se estendia para além da Quaresma, com o chamado Tempo da Septuagésima, e incluía ainda outro círculo em sua extremidade: o Tempo da Paixão, constituído pela chamada “Semana das Dores” e a Semana Santa.
É um quadro ricamente adornado e até um pouco complexo, podemos admitir, mas não só os católicos já estavam habituados a esse ritmo como havia nessa “obra de arte” como um todo pequenas contribuições de cada época da história da Igreja, formando no fim um conjunto admirável. Impossível não lembrar, olhando para essa ordem antiga, do testemunho do Cardeal Ratzinger sobre sua experiência pessoal com o “misterioso mundo da liturgia”:
Cada novo degrau no acesso à liturgia era, para mim, um grande acontecimento. Cada livro novo me era uma preciosidade, e eu não podia sonhar com nada mais lindo. Foi para mim uma aventura cativante esse lento acesso ao misterioso mundo da liturgia, que lá no altar, diante de nós e para nós, se realizava. Tornou-se cada vez mais claro para mim que eu me encontrava aí diante de uma realidade que não foi inventada por uma pessoa qualquer, e não havia sido criada por uma autoridade ou grande personagem. Essa misteriosa fusão de textos e ações tinha nascido da fé da Igreja, através dos séculos. Carregava dentro de si o peso de toda a história, mas era, ao mesmo tempo, muito mais do que um produto da história humana. Cada século tinha contribuído com seus vestígios. As introduções nos ensinavam o que tinha vindo da Igreja primitiva, da Idade Média, dos tempos modernos. Nem tudo era lógico. Tudo era bastante complicado; nem sempre era fácil a gente se orientar. Mas exatamente por isso aquela estrutura era maravilhosa, e nos sentíamos em casa [i].
A nós, que vivemos com a liturgia reformada depois do Concílio Vaticano II, cabe não simplesmente lamentar ou “escolher um lado” na batalha dos Missais, mas proceder como aquele pai de família que do seu tesouro de família tira nova et vetera, coisas novas e velhas (cf. Mt 13, 52). Ainda que não participemos da liturgia tridentina (com a qual, sem dúvida, toda a Igreja tem a aprender), pode ser muito útil para a vida de oração doméstica ressuscitar algumas festas e costumes antigos, especialmente no que têm de pedagógico.
O fato é que as atuais Normas Universais do Ano Litúrgico e o Novo Calendário Romano Geral, promulgadas pelo Papa Paulo VI, são bem claras ao fixar o Tempo da Páscoa “do domingo de Ressurreição até o domingo de Pentecostes”: neste intervalo, “celebram-se cinquenta dias em alegria e exultação como um único dia festivo; antes, como o ‘grande domingo’” (n. 22). É supostamente para não quebrar essa lógica numérica e não acabar “prolongando desnecessariamente a ‘cinquentena’” entre as duas festas que se suprime a Oitava de Pentecostes [ii].
Também na nomenclatura dos domingos do Tempo Pascal houve mudança: antes eram chamados I, II, III, IV e V “depois da Páscoa”, e não simplesmente “da Páscoa”, como agora. A ideia era que os dias da Oitava de Páscoa constituíam uma só solenidade até o sábado, e neste dia, antes mesmo das I Vésperas do domingo, acontecia o clausum Paschæ, isto é, o “fechamento da Páscoa” [iii]. A oração Coleta do sábado deixava clara a ideia:
Concede, quæsumus, omnipotens Deus: ut, qui festa paschalia venerando egimus, per hæc contingere ad gaudia æterna mereamur. Per Dominum nostrum… — Fazei, Senhor onipotente, que os que celebramos (= pretérito perfeito) com veneração as festas pascais por elas mereçamos alcançar as alegrias eternas. Por Nosso Senhor Jesus Cristo…
Este dia e os outros da Oitava pascal eram chamados simplesmente segunda, terça, quarta-feira etc. in albis, isto é, “em vestes brancas”, em referência às vestimentas alvas que os neófitos usavam ao longo de toda semana, depois de ter sido batizados na noite da Vigília Pascal. Nesses dias festivos, os hinos e capítulos do Ofício Divino eram omitidos e, no lugar, se cantava simplesmente o versículo do Salmo 117: Hæc dies quam fecit Dominus: exsultemus et lætemur in ea, “Este é o dia que o Senhor fez; exultemos e nos alegremos nele”.
Hoje, a Oitava de Páscoa continua mantendo lugar de destaque na liturgia: seus dias têm precedência sobre quaisquer outras celebrações; na sexta-feira dentro dela não se faz abstinência de carne; a sequência Victimæ paschali laudes pode ser cantada em todas as Missas nesses dias; e, nos Prefácios, eles são tratados junto com o Domingo da Ressurreição como um único e mesmo dia. Assim se preserva, não obstante algumas pequenas diferenças, o caráter semanal da Páscoa, característica presente desde a sua fundação no Antigo Testamento (cf. Ex 12, 15ss; Dt 16, 3ss).
Igualmente antigo é o espírito festivo com que os cristãos vivem todo o período que vai da Páscoa até Pentecostes. Isso não mudou nem mudará. É um dado que liga o antigo povo de Israel ao novo povo de Deus, que é a Igreja. Nas palavras do liturgista anglicano Dom Gregory Dix:
Depois da Páscoa os “50 grandes dias” de intervalo entre a Páscoa e Pentecostes já eram reconhecidos no mesmo período [final do século II] como um festival contínuo, durante o qual eram proibidas, assim como nos domingos ordinários, todas as observâncias penitenciais, tais como fazer jejum e ajoelhar-se na oração corporal. A razão não era ainda a que faria deste tempo um festival em época posterior, a saber, a presença de Nosso Senhor com seus discípulos da Páscoa até a Ascensão. Não havia a ideia de fazer qualquer comemoração histórica disso; a Ascensão ainda se incluía na celebração da Páscoa, não era observada como uma festa separada quarenta dias depois. Mas, assim como para os judeus os cinquenta dias de colheita entre a Páscoa e Pentecostes simbolizavam a alegria de estar na posse da Terra Prometida, para o cristão esses cinquenta dias simbolizavam o fato de que, “em Cristo”, ele já entrara no Reino de Deus. Como o domingo semanal com o qual esse período estava associado, tanto na mente quanto no modo de sua observância, os “cinquenta dias” manifestavam o “mundo que há de vir” [iv].
Assim, pois, com Oitava de Pentecostes ou não, na liturgia reformada ou na antiga, vivamos com alegria “este tempo solene em que Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”. Transformemos em jubiloso albor o rigor com que vivemos a Quaresma, cuidando para fazer disso não um pretexto para voltar às obras da carne, mas sim um impulso para viver com ainda mais fervor a nossa fé.