“Quando teu navio, ancorado muito tempo no porto, te deixa a impressão enganosa de ser uma casa. Quando teu navio começar a criar raízes na estagnação do cais, faze-te ao largo. É preciso salvar a qualquer preço a alma viajora de teu barco e tua alma de peregrino”.
Somos peregrinos do Absoluto. A passagem de ano não pode deixar de falar a todo homem que pensa um pouco. Lembra-lhe que ele é um caminhante que atravessa os tempos. Onde termina esta caminhada? Para uns, ela desemboca no vazio ou no nada; para os ateus e materialistas é perspectiva sombria e sem esperança. Mas, para o cristão, a caminhada termina no Absoluto ou na Plenitude, uma aspiração inata de todo homem.
No mais profundo de si mesmo todo ser humano é inquieto e procura a Vida, a Verdade, o Amor, sem contradição. Quem não ousa aspirar a estes valores, condena-se a viver frustrado ou sem sentido. É o que diz o autor do Eclesiastes nos séculos IV/III a.C: “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade!”
O Natal veio nos relembrar que o Absoluto existe, não é um mito e nem ficção; é real. Não somente existe; ele vem buscar o homem. Deus quis compartilhar a sorte de viajante conosco, percorrendo as estradas pedregosas da vida presente, a fim de fazer delas o caminho para a vida plena; assumiu o que é da criatura para que a criatura possa gozar da companhia do próprio Deus aqui e no Além; entregou o Filho para fazer dos servos rebeldes “filhos no Filho”.
Na verdade, porém, Cristo só nasceu em Belém para poder nascer no coração de cada ser humano através dos tempos. É São Paulo quem o diz: “Vivo eu, não eu; é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). O Natal se prolonga em cada administração do Batismo, para que o cristão seja “um outro Cristo”. É com este pensamento e desejo que deve o cristão começar um Ano Novo.
Vivemos dias em que as pessoas se queixam, e com razão, de inclemência, e tomam providências contra o terror. Mas, em todas as fases da história os tempos pareceram ingratos. Apesar de todos os esforços para diminuir os males a terra nunca será um Paraíso.
Consciente disto, o cristão não se deixa iludir e procura atravessar os tempos turbulentos como Peregrino do Absoluto. Absoluto que não está distante, mas que lhe vem ao encontro através da fé e dos Sacramentos. Dizia o Papa São João Paulo II: “Aprendei a ouvir no silêncio a voz de Deus, que fala no mais fundo de cada um de nós” (L’Osservatore Romano, 16/10/2001, p.1).
Isto quer dizer: sem deixar de lado as tarefas temporais, o cristão alimenta sua esperança e sua fortaleza no diálogo com o Absoluto ou na oração.
Há em nós a natural tendência à acomodação que ameaça todo ser humano, e ameaça nos aos poucos, insensivelmente. Todavia, para quem é peregrino, a estabilidade é estagnação e fonte de putrefação.
Um novo Ano se abre, é uma oportunidade de despertarmos do sono da rotina e semearmos com largueza no decorrer de cada novo dia!
S. Tiago na sua Carta disse que: “A língua põe em chamas o ciclo da existência ou a roda da vida” (3,6). Por que comparavam os antigos a nossa vida com uma roda? Na roda que se move, o que está na parte superior vai para baixo, e vice-versa. Assim a roda seria o símbolo da sorte, que exalta e rebaixa sucessivamente os homens. A roda é a imagem da sucessão monótona, algo fechado, sem saída. Mas o cristianismo prefere, para designar a vida, uma outra imagem: a do cone ou da parábola. Uma figura que se vai abrindo e dilatando cada vez mais, como se estivesse para abarcar o Infinito, o Absoluto. Esta imagem revela a realidade da dinâmica da vida cristã, que é uma semente de eternidade, a graça santificante, o “gérmen da glória”, que vai desabrochando até chegar ao encontro face-a-face com a Beleza Infinita de Deus.
O ano de 2023 é um segmento desse cone: deve indicar para o cristão, uma fase de crescimento interior e de aproximação da plenitude dos valores definitivos. Deus, que chama o homem para a comunhão com Ele, o acompanha nessa caminhada e o aguarda.
É hora de dar um balanço na própria vida, e descartar com a força da graça do Natal tudo que é supérfluo, desnecessário e que nos impede de caminhar célere em busca do Infinito. Deixemos as vaidades e vanglória à beira do caminho; abandonemos a mentira e a preguiça; enterremos os apegos às criaturas e os prazeres pecaminosos; renunciemos a glutonaria, a ira e as invejas corroedoras da alma. Que nesta virada de Ano, nossa alma se renove em busca do nosso único Destino.
Senhor, que neste Ano novo, possamos reconhecer todos os dias o teu santo desígnio e a tua reconfortadora presença!